Sociologia do Corpo

Diversas tradições teóricas foram influenciadas pelo desenvolvimento da sociologia do corpo contemporânea, tal como a antropologia filosófica, o marxismo humanista, e a fenomenologia. Porém, a influência mais dominante nas abordagens históricas e sociológicas de finais do século XX, foi indiscutivelmente Michel Foucault (1926-84).

Introdução

Diversas tradições teóricas foram influenciadas pelo desenvolvimento da sociologia do corpo contemporânea, tal como a antropologia filosófica, o marxismo humanista, e a fenomenologia. Porém, a influência mais dominante nas abordagens históricas e sociológicas de finais do século XX, foi indiscutivelmente Michel Foucault (1926-84). A investigação deste em torno da sexualidade, medicina e disciplina, suscitou uma teoria geral da domesticação do corpo.

Desenvolvimento

A distinção entre a domesticação do corpo individual, ou seja, a política anatómica do corpo, e o controlo regulador, quer dizer, a biopolítica da população, na obra The History of Sexuality (1978), estimulou uma investigação sociológica geral da “governamentalidade” (Burchell et al. 1991). O interesse sistemático no corpo iniciou-se na década de 80 com as obras The Body and Society (Turner 1984) e Five Bodies (O’Neill 1985). O jornal Body and Society veio à luz em 1995 para suprir este mercado académico em expansão.

Assumindo-se uma perspetiva mais ampla, o investigador deparar-se-á com um interesse persistente, mas por vezes errático, do interacionismo simbólico no corpo, identidade, self, e na interação. Erving Goffman no livro The Presentation of Self in Everyday Life (1959) demonstrou a importância do corpo para a identidade nas perturbações das interações. O reconhecimento da necessidade de se gerirem as funções corporais para se evitarem situações humilhantes foi uma importante consequência da abordagem de Goffman.

Ao passo que o corpo começou a aparecer no estudo das “micro-interações”, por outro lado revelou ser uma tremenda implicação para a sociologia histórica das normas do comportamento civilizado, percurso este, trilhado por Norbert Elias no título The Civilizing Process (1978). O adestramento do corpo, especialmente em relação às artes marciais, a dança, e o comportamento geral, foi estudado por Elias na transformação da sociedade de corte. Utensílios domésticos, tais como o garfo ou a cuspideira, eram ferramentas importantes na regulamentação das maneiras através do treinamento do corpo. Por volta de 1990, a história e a sociologia do corpo tornou-se num desenvolvimento académico espantoso, o que se denotou pela pesquisa sobre a sexualidade, a cultura, e a representação do corpo humano.

O interesse académico no corpo consistiu numa resposta às mudanças significantes na sociedade do pós-guerra, nomeadamente, o aumento do consumismo e a expansão das indústrias de lazer. No século XIX, o corpo, enquanto fator de produção, era um problema implícito para a teoria económica relativamente ao trabalho. A grande questão revolvia no como tornar o corpo produtivo ao incrementar a eficiência através do treino, regulação e controlo. Por exemplo, a dieta foi uma estratégia de administrar o corpo do Outro, e com tal iniciativa, a eficiência do corpo humano aumentou graças ao racionamento adequado, ao exercício, e ao controlo diatético (Turner 1992). O taylorismo, na gestão do trabalho em condições fabris, foi outro exemplo, ao qual se acresce a ciência doméstica dirigida às raparigas nas escolas. Em 1920, o programa de eugenia tornou-se numa importante política governamental em sociedades como a Turquia, a Suécia e a Alemanha. Na Itália, o fascismo patrocinou o desporto em massa e a ginástica com o intuito de disciplinar a população e incorporar a classe operária na estética fascista.

Na fase final do século XX, consolidou-se a crescente ênfase económica e social do lazer e consumo em detrimento da produção. A expansão desta nova cultura hedonística foi identificada por Daniel Bell na obra The Cultural Contradictions of Capitalism (1976). Neste livro Bell descreveu as novas contradições emergentes numa sociedade que necessitava ainda de uma mão-de-obra disciplinada, ao mesmo tempo encorajando e promovendo o hedonismo por intermédio da publicidade, a concessão de créditos, e o consumismo. Num artigo negligenciado, Talcott Parsons (1974) acentuou uma mudança, nomeadamente dos componentes racionais e cognitivos da cultura para os elementos de expressividade afetuosa. Na mesma ótica, sugeriu que os movimentos religiosos contracultura articulariam a nova demanda pelo prazer individual, gratificação, glorificação do Self, e o puro amor.

As indústrias do lazer, consumo de massa, e do crédito, desenvolveram-se paralelamente à agudização da estética jovial, ativismo no sentido de atividade física, e beleza corporal. O corpo tornou-se no principal fio condutor para a coisificação do mundo quotidiano, simbolizando as culturas jovens da sociedade do pós-guerra. Adicionalmente, o envelhecimento, a doença e a morte, deixaram-se de representar factos absolutos sobre a condição humana, assinalando antes possibilidades contingentes constantemente transformadas pelas novas conquistas medicinais. A cirurgia cosmética tornou-se numa indústria em crescimento nas sociedades ocidentais, o que se deduz pela capacidade desta ciência em reconstruir o corpo. Assim, e numa configuração já pós-moderna, o corpo é interpretado como matéria que pode ser interminavelmente recreada e remodelada.

 

Quatro Perspetivas: Construção, Representação, Experiência e Técnicas do Corpo

Podem-se identificar quatro perspetivas teóricas na sociologia do corpo. A primeira demonstra que o corpo não é um fenómeno natural, sendo antes socialmente construído. A segunda considera como o corpo se torna numa representação das relações sociais de poder. A terceira examina fenomenologicamente o corpo vivido, a experiência da incorporação na vida quotidiana. A quarta perspetiva, significativamente influenciada pela antropologia, olha para o corpo como um repositório de práticas e técnicas.

 

Construção

Em primeiro lugar, e particularmente na teoria feminista, temos o exame do corpo enquanto construção social. A título de exemplo, Simone de Beauvoir na obra The Second Sex (1972) argumentou que as mulheres não nascem mulheres; tornam-se mulheres por intermédio dos processos sociais e psicológicos que as edificam como seres essencialmente femininos. O trabalho de Beauvoir inaugurou uma tradição de pesquisa concentrada sobretudo na produção social de diferenças ao nível do género e da sexualidade.

A contribuição básica das teorias feministas do corpo foi outorgada ao construtivismo social, isto é, as diferenças entre homens e mulheres que assumimos garantidamente, tal como se fossem factos brutos da natureza, mas que são socialmente produzidas. O feminismo na década de 70 foi importante no estabelecimento da diferença entre o sexo determinado biologicamente, e a construção dos papéis de género e identidades sexuais. A pesquisa empírica, subsequentemente, explorou a forma como a subordinação social e política da mulher se expressa na depressão psicológica entre outras doenças físicas.

 

Representação

Em segundo lugar, o corpo é frequentemente discutido como uma representação cultural das organizações sociais. Por exemplo, a cabeça é metaforicamente um chefe de governo, ou pense-se na palavra “corporação”, que descreve as companhias modernas, e cuja etimologia se originou nas metáforas corporais. Na tradição antropológica, as divisões do corpo são usadas para se efetivarem as distinções morais entre o bem e o mal. Por exemplo, e para se utilizar um modelo teórico obsoleto da tradição antropológica, a mão esquerda representava o lado sinistro do ser humano, ao passo que a mão direita representava precisamente o oposto, isto é, o seu lado luzidio. Na senda de Foucault, a pesquisa histórica demonstrou como as representações do corpo resultam de relações de poder, nomeadamente entre o homem e a mulher. Uma ilustração clássica é o argumento histórico de que os mapas anatómicos do corpo humano variam entre sociedades em termos do discurso do género dominante.

 

Experiência

Em terceiro lugar, o conceito do “corpo vivido” foi desenvolvido pelo filósofo francês Maurice Merleau Ponty no livro Phenomenology of Perception (1982). Ao conceber uma fenomenologia do mundo quotidiano, o filósofo preocupou-se em compreender a consciência, perceção, e intencionalidade humana. Este trabalho foi original na forma como aplicou o método fenomenológico de Edmund Husserl à consciência intencional, mas a partir da perspetiva da existência corporal. O intuito era descrever o mundo experienciado sem o recurso ao dualismo convencional entre o sujeito e o objeto, legado do cogito cartesiano. Merleau Ponty avançou com a ideia do sujeito corporal que está sempre situado numa realidade social, rejeitando abordagens mecanicistas e behaviouristas. Em suma, a perceção não pode ser julgada como uma consciência desincorporada.

 

Técnicas do Corpo

Por último, é igualmente possível examinar como é que os humanos adquirem práticas corporais necessárias ao andar, à dança, ao aperto de mão, etc. Os antropólogos sociais foram profundamente influenciados por Marcel Mauss, que inventou o conceito de “técnicas do corpo” para descrever o modo como as pessoas gerem os seus corpos consoantes as normas sociais. As crianças, a título de exemplo, devem aprender a posição correta para se sentarem à mesa, e os rapazes são ensinados a lançar objetos de formas que os diferenciam das raparigas. Este legado antropológico sugere que pensamos o corpo como um conjunto de performances.

Este pressuposto foi desenvolvido por Pierre Bourdieu em termos de dois influentes conceitos, sendo o primeiro o conceito de “hexis”, que engloba as posturas e gestos que as pessoas orquestram, e o segundo consistindo no “habitus”, que representa as disposições à luz das quais o gosto individual é expresso.

 

Corpo, Incorporação e Performance

 Ao considerar-se o futuro da sociologia do corpo, dois temas são importantes. Em primeiro lugar, há um acordo geral que admite que, ainda que exista um extenso debate teórico sobre o corpo, aceita também que o campo de investigação se caracteriza por uma tradição de pesquisa empírica insuficiente e inadequada. É a propósito desta lacuna, que tem entrado em cena o contributo valioso e indispensável dos antropólogos.

Em segundo lugar, tem surgido uma atração inegável para com a performance, como o ballet ou o hip-hop que poderá ser uma fonte de mais estudos empíricos do corpo. Ao passo que uma coreografia é, em certo sentido, o texto da dança, a performance assume lugar fora do âmbito das restrições rigorosas do trabalho coreográfico, pelo que a dança tem a iminente qualidade de não poder ser interpretada pela análise do discurso.

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References:

Beauvoir, S. de (1972) The Second Sex. Penguin, Harmondsworth.

Bell, D. (1976) The Cultural Contradictions of Capitalism. Basic Books, New York.

Bordo, S. (1993) Unbearable Weight: Feminism, Western Culture, and the Body. University of CaliforniaPress, Berkeley.

Bourdieu, P. (1977) Outline of a Theory of Practice.
Cambridge University Press, Cambridge.

Foucault, M. (1977) The History of Sexuality.Tavistock, London.

Goffman, E. (1959) The Presentation of Self in Everyday Life. Doubleday Anchor, Garden City, NY.

Mauss, M. (1979) Body Techniques. In: Sociology and Psychology: Essays. Routledge, London, pp.95 123.

Merleau-Ponty, M. (1982) Phenomenology of Perception. Routledge & Kegan Paul, London.

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