Apresentação geral
«A Sagração da Primavera» (Quadros da Rússia Pagã) é um bailado em duas partes com música de Igor Stravinsky, libreto de Nicholas Roerich e coreografia de Vaslav Nijinsky. Composto entre 1911 e 1913, foi produzido pela primeira vez por Sergei Diaghilev, para a sua companhia Balllet Russes. A estreia (dirigida por Monteux), que aconteceu no Théâtre des Champs-Elysées, 29 de Maio de 1913, foi motivo de um escândalo, ainda hoje célebre.
O escândalo da estreia: causa(s)
«A Sagração da Primavera» protagonizou aquela que será, seguramente, uma das mais famosas estreias de sempre no mundo do espectáculo, dado ter obrigado à intervenção policial para ser levada a termo. As opiniões sobre a causa de tal comoção dividem-se. Terá sido a música ou a coreografia? É justo separar as duas, dado que a segunda parte inquestionavelmente da primeira? Ou terão sido as duas?
O caos instalou-se ainda no início, com «Augúrios Primaveris», a segunda cena da primeira parte. O pulsar rítmico intenso, aliado à imagem ritual e primitiva do cenário (com o grande contributo de Roerich), deu origem a uma coreografia “violenta”, completamente distinta do ballet clássico ao qual o público estava habituado: “os corpos dos bailarinos voltados de costas para o público, os pés enfiados para dentro e as bacias rodando em contra-ciclo, as linhas orgânicas do bailado romântico contrariadas por diagonais autofágicas que sujeitavam os bailarinos a um movimento convulso” (Costa, 2013). Os insultos e assobios depressa escalaram de tom dando lugar às bofetadas, aos socos e pontapés entre os apoiantes do espectáculo e aqueles que se sentiam ultrajados. Quase no final da primeira parte, a polícia restabeleceu parcialmente a ordem, permitindo, pelo menos, a conclusão do espectáculo.
Diaghilev afirmou, depois, que tinha pretendido tamanho escândalo. Gabriel Astruc, proprietário do teatro, acendeu e apagou a luz continuamente tentando acalmar a sala. Este “queria um teatro “que pudesse ser testemunha da arte do seu tempo”, explica-se no livro que celebra o centenário do Théâtre des Champs-Elysées, mas o tempo não parecia preparado para a revolução que se vivia naquela noite” (Costa, 2013).
É certo que a música em «A Sagração da Primavera» representou uma ruptura com os cânones anteriores da composição, aventurando-se por novos caminhos, especialmente em termos rítmicos e de utilização dos timbres. A complexidade harmónica, que não é de desconsiderar, não sobreviveu contudo ao teste do tempo, no que a verdadeira inovação diz respeito. Quanto às suas características musicais importa, ainda, salientar a génese da obra: a música tradicional russa. O tema dos rituais pagãos insere-se na tradição russa pagã já explorada em obras de Mussorgsky ou Rimsky-Korsakov. Mas esta influência é ainda mais óbvia perante o facto do compositor ter recolhido muitos dos seus temas em canções populares lituanas de Juskiewicz, “uma comparação entre a partitura da Sagração e a antologia de Juskiewicz permite ver os mesmos contornos melódicos vestidos de ritmos diferentes. Esse facto dá uma grande unidade idiomática à Sagração da Primavera” (Pereira, nd).
Meses depois da estreia, a música de «A Sagração da Primavera» era já apreciada. “Jacques Rivière, na Nouvelle Revue Française escrevia (…) que “a grande novidade era a recusa do supérfluo”. “Eis aqui uma obra absolutamente pura. Tudo aqui é franco, intacto, límpido e rude. A Sagração da Primavera é a primeira obra-prima que podemos opor às do impressionismo” (Costa, 2013). Quando a obra foi apresentada em concerto (ou seja, não encenada), não causou qualquer motim. Já a coreografia de Nijinsky só voltaria a palco no ano de 1980. A tese de que terá sido a coreografia a causar o verdadeiro escândalo não se encontra de todo mal suportada.
«A Sagração da Primavera»: cenas
«A Sagração da Primavera» divide-se em duas partes: “Adoração da Terra” e o “Grande Sacrifício”.
Primeira parte:
- Prelúdio: antes do levantar da cortina, escuta-se um solo de fagote no registo agudo, “no qual nos confrontamos com o momento que antecede uma nova gestação e o potencial infinito de crescimento que uma nova vida representa” (Pereira, nd). A textura orquestral vai crescendo, mas cada instrumento detém a sua individualidade, numa metáfora clara para o despertar da Primavera.
- Augúrios Primaveris: nesta cena jovens adolescentes estão na companhia de uma mulher, na verdade misto de mulher e animal (que conhecerá os segredos da existência), que corre pela terra enquanto os jovens batem com os pés no chão ao ritmo do pulsar da Primavera – repetição da mesma anota com diferentes acentuações rítmicas.
- Jogo do Rapto: a música é desenvolvida pelos metais e pela percussão, numa espécie de delírio rítmico e polifónico.
- Danças Primaveris: segue-se uma marcha feminina de grande sensualidade, quando as jovens, uma a uma, saem do rio e juntam-se num círculo com os rapazes. Desta união, nascem diferentes tribos, que serão depois rivais. A flauta alto e o clarinete piccolo fazem a transição para a cena seguinte, trazendo uma espécie de calma depois do movimento agitado desta “origem” e do movimento agitado que se seguirá.
- Jogo das tribos rivais: o conflito entre as tribos é anunciado pelos trombones e pelas tubas. Esta luta é identificada pela alternância de pequenos motivos entre os diferentes naipes da orquestra.
- Cortejo do sábio: dominado pelos metais.
- Adoração da Terra (O Sábio): o pontífice das tribos bendiz a Terra, sendo representado musicalmente por compassos de quase silêncio, em pianíssimo, de reduzida textura.
- Dança da Terra: celebra-se a euforia da Primavera.
Segunda parte:
- Prelúdio: “tem início com um estranho oscilar entre duas notas, um fundo musical quase autista que Stravinski descreveu como um “jogo obscuro das jovens adolescentes”. Entre elas, uma será a eleita para devolver à Natureza a força que lhe foi roubada pelo desflorar da Primavera” (Pereira, nd).
- Círculo místico: o compositor retoma os contornos melódicas da cena “Danças Primaveris”, agora nas cordas. “É um momento lento, de alguma tristeza e grande expectativa sobre quem será a eleita” (Pereira, nd).
- Glorificação da eleita: a escrita orquestral manifesta novamente aqui toda a sua complexidade, enquanto metáfora da força de natureza, no momento agitado da escolha da eleita, coroado com as pancadas secas dos tímpanos. Chamam-se, assim, os antepassados, num novo ritmo de marcha irregular, ao som de toda a orquestra.
- Ritual dos antepassados: a cena inicia-se com um solo do corne inglês, que tem como pao de fundo o pulsar piano dos outros instrumentos, ao qual se veem juntar a flauta contralto e depois o clarinete. Os antepassados criam, aqui, um círculo em redor do lugar escolhido para o dito grande sacrifício.
- Dança sacrificial: uma das jovens dança até à morte. “É o momento mais fantástico e misterioso de toda a obra. Começa lentamente numa dramaturgia rítmica e vai crescendo progressivamente na sua complexidade melódica e harmónica juntando diferentes instrumentos. A exaustão a que a jovem chega não é representada num jogo de velocidade mas numa multiplicidade polifónica que parece superar as faculdades humanas. Ao tomar consciência do estado em que a jovem se encontra, os antepassados aproximam-se do centro do círculo e erguem-na antes que ela sucumba. Ouve-se um arpejo nas flautas, ecoado nas cordas e no piccolo, e tudo termina. A Primavera foi consagrada” (Pereira, nd).
References:
Costa, T.B. (2013). A verdadeira Primavera revolucionária. PÚBLICO. Em https://www.publico.pt/2013/05/29/jornal/a-verdadeira-primavera-revolucionaria-26603522
Kennedy, M. (1994). Dicionário Oxford de Música. Publicações Dom Quixote.
Pereira, R. (nd). A Sagração da Primavera. Acervo Casa da Música. Em http://www.casadamusica.com/pt/artistas-e-obras/obras/a/a-sagracao-da-primavera-igor-stravinski/?lang=pt#tab=0