Introdução
O conceito de asceticismo demonstra a unidade dos esforços realizados por um sujeito, na demanda pelo progresso da sua vida em termos morais, religiosos e espirituais. O sentido original do termo refere-se a qualquer exercício, físico, intelectual, ou moral, perseguido com método e rigor, na esperança do seu praticamente alcançar o aperfeiçoamento de si mesmo. Não obstante a grande maleabilidade que caracteriza a aplicação do asceticismo, o conceito sempre aludiu à procura da perfeição, submetendo o corpo ao espírito, evocando assim a distinção simbólica entre a vida exterior e a vida interior.
Posteriormente, a evolução do conceito de asceticismo consumou-se de acordo com diferentes matrizes histórico-sociais, resultando desse fenómeno o interesse das ciências sociais no conceito, mormente nas considerações tecidas sobre o mundo ocidental. À parte da combinação do exercício físico e intelectual, que sempre apresentaram a sua própria relevância social, o asceticismo implica a complexa relação entre a natureza e a cultura, assim como a clássica relação religiosa entre a fé e a razão: tais aspectos são os frutos de negociações contínuas e dinâmicas que se desenvolveram nos respectivos contextos socioculturais.
Contexto Histórico
Um olhar atento e compreensivo na evolução histórica do conceito de asceticismo, permite a descrição do significado de asceticismo segundo o seu emprego. Etimologicamente, o termo resulta do grego, e foi Homero quem o usou para referir a técnica e a produção artística. Heródoto e Tucídides apropriaram-se do termo para mencionarem o exercício físico e o esforço assumido pelos atletas e soldados na domesticação do corpo belo e saudável. Acoplada com esta vertente física do asceticismo, encontra-se a dimensão moral, cujo aprimoramento constante e prolongado leva o intelecto à sabedoria e virtude. Com os pitagóricos, o conceito de asceticismo é usado especificamente na esfera religiosa, aludindo ao aperfeiçoamento dos exercícios da alma, para que esta mereça o dom da contemplação de Deus.
Posto isto, é nítida a fusão no mundo clássico do plano físico com o plano religioso, cujo equilíbrio só seria possível com o exercício do corpo, o controlo das paixões, a mortificação por intermédio da abstinência e renúncia, e os trabalhos humanos conducentes ao homem novo, isto é, ao homem virtuoso.
No Cristianismo inicial, todos os elementos acima enunciados foram interpretados e organizados numa doutrina coerente. Especialmente na vida monástica, como se de uma tentativa de substituição dos sacrifícios sanguinários dos primeiros mártires se tratasse, a penitência e o asceticismo tornaram-se nos instrumentos necessários no combate contra o pecado, e subsequente ganho de graças particulares de Deus.
Percepcionada deste modo, a vida cristã tornou-se numa luta austera que combinava o sofrimento e a renúncia num contínuo esforço de ultrapassagem das tentações da carne. Tais controlos dos instintos, e por vezes mesmo das inclinações legítimas dos desejos, marcaram a relação particular do ascético com o seu corpo. Como acréscimo da pobreza e da obediência, também a castidade foi preconizada, reflectindo-se inúmeras vezes em formas extremas de hostilidade perante a sexualidade. Se é verdade que as tradições cisterciense e beneditina prezaram a mortificação corporal, não é menos verdade que o trabalho, o silêncio e a oração, conjuntamente com os jejuns e vigílias, se tornaram nos elementos característicos do asceticismo.
Durante a Idade Média, as práticas ascéticas saíram do domínio exclusivo dos mosteiros para integrarem grupos de leigos que, imitando as grandes ordens religiosas como os Dominicanos ou os Franciscanos, se juntaram para criarem as Ordens Terceiras. Durante este período, o asceticismo sofisticou-se, pois foram desenvolvidos novos métodos para o aperfeiçoamento dos exercícios da vida espiritual. Entre estes, foi destinado um lugar especial à oração mental, que incluía a repetição contínua de fórmulas simples de oração, como o rosário ou a invocação breve dos santos.
Asceticismo e Misticismo
Com o advento da era moderna, especialmente com a Reforma, ascendeu a crítica radical do asceticismo enquanto concepção resultante dos doutrinadores da Idade Média. No entanto, a doutrina de Lutero conhecida como justificação, que negava o valor do esforço humano na obtenção da salvação, não resultou na indiferença moral e ética. A Reforma promoveu uma nova compreensão do asceticismo, que ao invés de se revelar na disciplina física, passaria a manifestar-se no local de trabalho, na vida matrimonial, no respeito pelos pais, e no compromisso com responsabilidades políticas, sem que tal deslocamento invalidasse a oração e a meditação sobre a Bíblia. Mais tarde, Max Weber viria a considerar o capitalismo moderno como uma expressão da mentalidade calvinista puritana.
Mesmo os Católicos perceberam os excessos e riscos associados à aplicação indiscriminada do asceticismo, pelo que a Igreja se distanciou das práticas mais execráveis e desumanas que eram cometidas. Mesmo no campo da teologia, uma nova sensibilidade acometeu a mundividência da época, sublinhando a pré-eminência das acções de Deus, não obstante, salientando a necessidade do esforço humano. O fundamental não era tanto a acção humana, mas sim a aceitação humana dos trabalhos do Espírito. A disponibilidade excessiva do asceticismo foi substituída por uma atitude mística que valorizava a fisicalidade, as paixões da alma, e as emoções da pessoa.
Todavia, o asceticismo e o misticismo não foram considerados como opostos: antes como dois aspectos de uma só jornada espiritual. Principalmente a partir dos tempos modernos, esta jornada deixa de privilegiar a mortificação do corpo e das paixões para subscrever a importância do desenvolvimento individual harmonioso, tanto física como espiritualmente.
A Abordagem Sociológica
Os pais fundadores da sociologia demonstraram um grande interesse tanto no asceticismo como no misticismo, não centrando com o mesmo esforço a sua atenção das formas de vida religiosas particulares que brotaram daquelas no decorrer dos séculos. O interesse nesta temática mantém-se vivo mesmo no mundo contemporâneo, e os sociólogos encontram a influência destas correntes não só na experiência religiosa, mas também em relação com diferentes campos como a preocupação com o corpo ou o activismo político.
Max Weber contrastou o asceticismo e o misticismo, especificando que o primeiro considera a salvação como o resultado das acções humanas no mundo, ao passo que o último refere-se a um estado particular de iluminação, que só é atingido por poucos através da contemplação. Enquanto o asceticismo convoca no labor dos agentes sociais a encarnação dos valores religiosos, a perspectiva mística do mundo perde importância de modo a ser consumada a união com Deus. A lógica do misticismo é escapar do mundo, e já a lógica do asceticismo é assumir uma postura beligerante para com um mundo repleto de pecado.
Weber apontou também que, como categoria sociológica, o asceticismo é amplo e por vezes ambíguo. Por um lado, a categoria implica os esforços sistemáticos e metodológicos na subordinação dos instintos naturais e linguísticos aos princípios religiosos. Por outro lado, a categoria refere a crítica religiosa às relações convencionais, e utilitaristas, da vida social. Portanto, é possível distinguir duas modalidades de asceticismo: a primeira, fundado numa percepção altamente negativa do mundo; a segunda, a consideração do mundo como uma criação divina. Embora o mundo seja o local onde o humano pode pecar, é também o lugar concreto onde o ser virtuoso completa a sua vocação com recurso a um método racional.
Outra distinção indicada por Weber prende-se com a diferença entre as religiões ocidentais e as religiões orientais. Embora este contraste não seja rígido e nítido, as religiões orientais fundamentam-se no misticismo, ao passo que as religiões ocidentais se centram em ideias ascéticos e na ética. Tal não significa que o cristianismo ocidental seja desprovido de experiências místicas, especialmente na esfera católica, que determinou e determina as práticas ascéticas que reforçaram a autoridade da Igreja.
O asceticismo, quando analisado como uma prática concreta na vida religiosa de um grupo, como a título de exemplo o Calvinismo entre outras seitas protestantes, revela o potencial de se tornar forçosamente num elemento dinâmico de transformação sociocultural, instigando movimentos revolucionários ou reformistas.
References:
Weber, M. (1958) The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. Charles Scribner’s Sons, New York.
Weber, M. (1963) The Sociology of Religion. Beacon Press, Boston.