I
Desde o primeiro momento em que entramos no mundo social, que os factos culturais toldam o significado nas nossas decisões. A nossa orientação e identidade sexual são definidas pela ordem simbólica desse mundo através do uso de linguagem verbal e não-verbal. O modo através do qual percebemos a significância da heterossexualidade acaba por ser um produto simbólico da ordem cultural e as respetivas práticas subjacentes. Assim, como categoria social, a heterossexualidade é muito mais do que a consumação da atração sexual ou afecional de um indivíduo. O que pensamos quando falamos de heterossexualidade refere-se a nós enquanto heterossexuais, e acaba por ser um produto dos processos de fabricação de significado, indissociáveis das sociedades onde nos inserimos. Consequentemente, a heterossexualidade opera como uma instituição social altamente organizada, variando consoante a cultura, histórica, região, religião, etnicidade, nacionalidade, raça, esperança de vida, classe social, e aptidão.
II
A tarefa de examinar este arranjo social altamente difuso e pressuposto, requer um esquema conceptual capaz de revelar as formas como a heterossexualidade é institucionalizada, naturalizada, e normalizada. Qualquer tentativa de examinar a instituição da heterossexualidade e seus significados incumbidos, pede por uma teoria e metodologia suscetível de investigar as operações naturalizadas e disseminadas das práticas sociais (i.e., o namoro, casamento, Dia de S. Valentim, serviços de encontros, etc.).
O conceito de imaginário do psicanalista Jacques Lacan é notavelmente útil para tal propósito. Segundo Lacan, o imaginário é o contato sem mediação que uma criança tem com a sua própria imagem, e a conexão desta com a mãe. Ao invés de enfrentar um mundo complicado, conflituoso e contraditório, a criança experiencia a ilusão da tranquilidade, plenitude, e totalidade. Por outras palavras, as crianças experienciam um sentido de “unicidade” (oneness) com a mãe. Louis Althusser, filósofo francês, pedindo de empréstimo a noção de imaginário de Lacan para a sua teoria da ideologia neomarxista, definiu a ideologia como a relação imaginária dos indivíduos com as condições reais de existência.
III
Aplicado à teoria social da heterossexualidade, o imaginário heterossexual revela ser um modo de pensar que se apoia na noção sagrada e romântica de heterossexualidade de modo a ser criada e mantida a ilusão de plenitude. Esta visão romântica impede-nos de apreender a institucionalização da heterossexualidade, a que se devem as hierarquias sexuais, raciais, e de classe. O efeito deste retrato ilusório da realidade ilustra os pressupostos tomados como garantidos em torno da heterossexualidade. Assim, acaba por ser paradoxal que a heterossexualidade queira ser inquestionável, mas o género seja compreendido como algo à luz do qual as pessoas são socializadas. O imaginário heterossexual naturaliza as relações sociais, rituais, e práticas entre homem e mulher, ocultando as operações da heterossexualidade na estruturação do género. Este conjunto de suposições arruína a análise crítica da heterossexualidade como instituição organizadora, e os fins que serve. Sem exame, não se explora como é aprendida, o que controla, e os interesses que serve.
A realidade vivida da heterossexualidade institucionalizada não é, contudo, tipicamente tranquila ou segura. As consequências do imaginário heterossexual incluem, por exemplo, violação matrimonial, violência doméstica, desigualdade salarial, racismo, femicídio, e o assédio sexual. A heterossexualidade institucionalizada e a ideologia por detrás (o imaginário heterossexual) estabelecem quais os comportamentos a serem atribuídos a homens e a mulheres, ao mesmo tempo mantendo ou produzindo toda uma histórica de relações sociais contraditórias e desequilibradas.
Acima de tudo, o imaginário heterossexual naturaliza a regulação da sexualidade através da instituição matrimonial e das leis concernentes à vida conjugal. Estas leis, entre outras, definem taxas, seguros de saúde e benefícios imobiliários, na base do estatuto matrimonial. Raramente desafiadas, as leis entre outras políticas do sector público e privado, usam o casamento como a exigência primária para a conceção de privilégios económicos e sociais, e mesmo o acesso à cidadania em casos extremos.
References:
Ingraham, C. (1994) The Heterosexual Imaginary: Feminist Sociology and Theories of Gender. Sociological Theory 12(2): 203 19.