Filme

Incursão numa leitura sociológica da história do filme.

História

Durante o século XX, como uma das primeiras formas culturais produzida em massa, temos o filme, sendo que no cinema encontramos a sua mais distinta e altamente influenciável indústria. Baseado em novas tecnologias de reprodução mecânica que tornaram possíveis as simulações do real e as produções de mundos fantásticos, o cinema providenciou um novo prisma cultural que alterou profundamente os padrões de atividades de lazer, acabando por vir a assumir um papel importante na vida social. Os primeiros filmes foram invenções de técnicos e empreendedores como os irmãos Lumière ou precursor do cinema Georges Méliès no caso da França, e a Corporação Edison nos Estados Unidos da América.

Irmãos Lumière

                      Irmãos Lumière

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os primeiros filmes eram silenciosos, e sobretudo abrangiam o género documentário, as ficções realistas com formato de semidocumentários, e ficções fantásticas, encontrando-se presentes no corpo cinematográfico dos Lumières, George Méliès e da Corporação Edison. Os géneros que viriam a caracterizar o filme de Hollywood começaram a aparecer durante as primeiras décadas do século XX: nomeadamente na categoria western, tal como o filme The Great Train Robbery (1903); os dramas sociais melodramáticos de D. W. Griffith; os dramas históricos de Bem Hurr (algumas versões apareceram cerca de 1899); filmes de terror; comédias de Mack Sennett, Charlie Chaplin, Buster Keaton, entre outros.

Filme Western - The City of Bad Men

Filme Western – The City of Bad Men (1953)

Desde o início que o cinema estava já ligado às vicissitudes da modernidade: o filme era uma forma de arte moderna tecnologicamente mediada, capturando as novidades da vida moderna. As imagens em movimento no cinema retratavam o ritmo rápido da vida contemporânea, mostrando caminhos-de-ferro, carros e autocarros, e aviões transformando rápida e dinamicamente a experiência individual do espaço-tempo; as vicissitudes da modernidade urbana, particularmente os estilos e modas, as divisões de classe, as ruas preenchidas com multidões, e as vagas de imigrantes. Os filmes habituaram a audiência aos ritmos e formas da modernidade, revelando-se – em conjunto com a radiodifusão entre outras expressões da cultura mediática -, uma importante força na integração dos indivíduos num estilo de vida em alucinante mutação, e numa sociedade moderna cada vez mais caracterizada pelo conflito.

Os primeiros filmes eram produzidos em grande medida para a classe operária, os imigrantes, e audiências urbanas, sendo que a crítica julgava os efeitos negativos e subversivos (Jowett, 1976). Por exemplo, as comédias de Charlie Chaplin troçavam das figuras com autoridade, e os dramas românticos eram atacados pela “Legião da Decência” (Legion of Decency, órgão criado nos EUA na década de 1930 por bispos católicos). E os dramas criminais eram frequentemente atacados por fomentarem a delinquência juvenil e o crime. Por outro lado, julgava-se que os filmes “americanizavam” os imigrantes, isto é, que ensinavam as audiências como serem bons americanos (Ewen & Ewen, 1982).

Nos países capitalistas, assistir a filmes era uma importante atividade de lazer, sendo que esta ajudou a iniciar as audiências à sociedade de consumo, onde o entretenimento era pago e tornado comodidade, e o filme tornado comodidade vendia os estilos, bens, serviços, valores, e o próprio espetáculo da sociedade de consumo. Na União Soviética, Lenine supostamente proclamou depois da revolução de 1917 que de todas as artes, o filme era a mais importante (Mailer, 1967). Os bolcheviques suportaram uma indústria cinematográfica incrivelmente produtiva: nas películas de Dziga Vertov encontramos documentados os anos iniciais da revolução; nos filmes de Eisenstein, Pudovkin, Dovzhenko, poderosas expressões da ideologia bolchevique e os respetivos valores.

O realizador Eisenstein

                                 O realizador Eisenstein

 

O cinema foi uma parte da indústria moderna, organizada primeiro nos EUA e eventualmente no mundo, consistindo os estúdios nas casas dos escritores, cenários e edifícios, equipas de maquilhagem e guarda-roupas, o cenário onde as cenas decorriam, e os edifícios onde os filmes eram editados e comercializado. Nos EUA entre outros lugares, o filme tornou numa indústria integradora, combinando a produção, a distribuição e a exibição, numa única corporação. O aparato publicitário auxiliou no estabelecimento de importantes agências de publicidade, e o sistema de vedetas ajudou na produção de um novo tipo de mediação cultural maciço de celebridades. O filme contribuiu também para geração novos espaços públicos, onde os indivíduos se congregavam para consumirem cultura, e os fantásticos palácios onde se assistiam a filmes na era inicial da história do cinema, deram a impressão de que a cultura se estava a tornar crescentemente democratizada e acessível.

Eventualmente, os produtos massificados e estandardizados, especialmente com a indústria de Hollywood, mas também em indústrias nacionais como no México, Brasil, Índia, China e Taiwan, impulsionaram a efervescência do fenómeno que os sociólogos classificaram como a sociedade de massa, emergida depois da 2ª Guerra Mundial, e caracterizada pelos produtos estandardizados e presumíveis audiências homogeneizadas. Por contraste, na Europa a tradição do filme artístico que emergiu no contexto do expressionismo alemão, no cinema poético francês, e no trabalho individual de autores como Carl Dreyer, Abel Gance ou Jean Renoir, foi sempre suportada pelo estado nacional, assim como também foi o cinema propaganda da Alemanha nazi, da União Soviética, e da Itália fascista.

Subsequentemente, depois da 2ª Guerra Mundial, inúmeros estilos nacionais cinematográficos reagiram contra o cinema de Hollywood, sobretudo no neorrealismo italiano, na new wave francesa, no cinema novo brasileiro, no terceiro cinema latino-americano, no novo cinema alemão, no novo cinema tawainês, entre outros movimentos mundiais que pretenderam criar novos estilos distintos e tipos de cinemas culturalmente relevantes para as audiências.

 

Problemáticas

Os debates sobre as relações entre o filme e a sociedade e os efeitos sociais do filme começaram durante a “era silenciosa”, e grandes figuras intelectuais marcaram presença na argumentação. A título de exemplo, Walter Benjamin assertou que a “reprodução mecânica” sustentava o filme na tecnologia entre outras formas culturais reprodutíveis, roubando à alta arte a sua “aura”, isto é, o poder estético da obra de arte enquanto objeto espiritual, e na sua relação com funções iniciais como a magia, cultos religiosos (Benjamin, 1972). Nestes casos, a “aura” do trabalho derivada da suposta autenticidade, singularidade e individualidade. Porém, numa era de reprodução mecânica, a arte tornou-se numa comodidade como outros itens produzidos em massa (como a fotografia e o filme), perdendo a sua mística de objeto transcendente.

Ao passo que membros da Escola de Frankfurt como T.W. Adorno e Max Horkheimer tenderam a criticar precisamente as formas de trabalho das culturas de massa mais mecanicamente mediadas pela sua estandardização e perda de qualidade estética (enquanto celebrando aqueles trabalhos que resistiam à comodificação e reprodução mecânica), Walter Benjamin visualizou características progressivas na perda de “aura” da alta arte e no seu rapto político. Segundo Benjamin, tal arte passou a assumir mais um valor de exibição do que um valor religioso, acabando a receção da obra por ser desmistificada. Adicionalmente, acreditou que a proliferação da arte massificada – nomeadamente na expressão fílmica – conduziria as imagens do mundo contemporâneo às massas, auxiliando a criação e emancipação da consciência política ao encorajar o escrutínio do mundo.

O modo como um filme é visualizado quebrou o modo reverente da perceção estética e admiração, práticas encorajadas principalmente pela elite cultural burguesa que promovia a religiosidade da arte. A montagem no filme, o efeito de choque, as condições massificadas do ato de assistir, a discussão de tópicos incentivada pelo filme, entre outros traços inerentes à experiência cinematográfica produzida, no entender de Benjamin, foram fatores determinantes para uma renovada experiência política e social da arte, que erodiram a experiência estética contemplativa, solitária e privada, fomentada pela alta cultura e os seus sacristões. Contra a contemplação da alta arte, o efeito de choque dos filmes produziu modos de distração que Benjamim acreditou tornarem credíveis um renovado pensamento crítico das audiências.

Um exilado alemão, Siegfried Kracauer, a certa altura próximo de Benjamin e Adorno, realizou um dos primeiros estudos sistemáticos da forma como os filmes articulam conteúdos sociais. Na sua obra From Caligarito to Hitler (1947), Kracauer argumentou que os filmes alemães do período entre a guerra revelavam uma alta disposição autoritária pela submissão à autoridade social, e um enorme medo do caos emergente. Para Kracauer, os filmes alemães refletiam um sentimento antidemocrático e atitudes passivas do estilo que cimentou o caminho para o nazismo. Ainda que tenha pressuposto que as tendências psicológicas “interiores” e os conflitos são projetados no ecrã, abrindo assim uma rica área de análise sociológica, Kracauer ignorou frequentemente o papel os mecanismos de representação tal como a descontextualização, inversão e condensação, na construção de narrativas e imagens cinemáticas. Ao formular a analogia entre filme e sociedade, nega o carácter e efeitos contraditórios e autónomos do discurso fílmico, e também a indeterminação do processo de material cinematográfico por parte do individual.

Os estudos sociológicos e psicológicos do filme de Hollywood proliferaram nos EUA no tempo imediato que sucede à 2ª Guerra Mundial, e identificam-se pela crítica cerrada ao mito, ideologia e significado, no cinema americano. Como exemplos, temos os estudos de Parker Tyler The Hollywood Hallucination (1944) e Myth and Magic of the Movies (1947), onde se aplicam leituras freudianas para demonstrar como os cartoons de Walt Disney, os melodramas românticos, entre outras formas populares de filme, fornecem maior clareza sobre a psicologia social e o contexto.

Outra tradição escolástica e crítica tentou situar os filmes historicamente, e descrever as interações entre o filme e a sociedade em termos sobremaneira políticos e sociológicos. Esta tradição inclui a história pioneira de Lewis Jacob sobre o filme de Hollywood, os trabalhos teóricos e críticos de John Howard Lawson, as investigações sociológicas de Ian Jarvie (1970, 1978), os estudos sobre as relações entre o filme, história e comentário social no filme, de D. M. White e Richard Averson (1972), e as histórias sociais escritas por Robert Sklar (1975), Garth Jowett (1976), e Thomas Schatz (1988). É admirável os pontos de vistas iluminados por esta tradição, sobre as relações entre a sociedade e o filme em eras históricas específicas; por outro lado censura-se a negligência por parte desta tradição quanto à construção da forma fílmica, e os modos singulares como filmes específicos entre outros géneros, influenciam a construção de significados e as interações das audiências com o filme.

A partir da década de 60 emergiram abordagens principalmente teóricas, incluindo a análise ideológica do trabalho fílmico em associação com os produtores e críticos franceses, publicados sobretudo na revista Cahiers du Cinéma. Estes críticos apelaram à atenção relativamente às concretizações de determinados autores de Hollywood, e de modo geral, louvaram o trabalho do artista cinemático criativo e do autor. Assente nesta tradição, a partir de 1970 a incrivelmente influente revista britânica sobre filme Screen Cahiers, incluirá textos de Roland Barthes, Christian Metz, e outros críticos pós-estruturalistas que produziram abordagens formais sofisticadas sobre o filme (Metz, 1974; Heath, 1981). O grupo da Cahiers deslocou-se da opinião sobre o filme como produto de um autor criativo, para a dissecação ideológica, política e sociológica, do conteúdo do filme, e descodificação das ideologias dominantes ocultas.

Durante este mesmo período de fertilidade intensa no campo dos estudos fílmicos, o Centro de Birmingham de Estudos Culturais Contemporâneos ia descobrindo gradualmente que o género, a “raça” e as subculturas, eram igualmente elementos importantes de análise sobre as relações entre a cultura, ideologia e sociedade. Estudos sobre as maneiras como o filme construía a raça, etnicidade e a sexualidade, tornaram-se fatores fundamentais igualmente, e várias tendências pós-estruturalistas influenciaram os estudos teóricos sobre o papel do filme e a cultura dos media na construção social de ideologias e identidades.

Atualmente existem uma multiplicidade de abordagens candidatas à teorização sobre as relações entre o filme e a sociedade. Consequentemente, o estruturalismo e pós-estruturalismo, a psicanálise, a desconstrução, o feminismo, pós-modernismo, entre outras correntes teóricas, geraram uma diversidade espantosa de abordagens. No plano cacofónico das abordagens contemporâneas ao filme, não há uma abordagem própria, mas antes uma variedade destas à disposição do interessado neste campo de estudos.

790 Visualizações 1 Total

References:

Benjamin, W. (1972) The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction. In: Illuminations. Harcourt Brace Jovanovich, New York.

Bordwell, D., Staiger, J., & Thompson, K. (1985) The Classical Hollywood Cinema. Columbia University Press, New York.

Branston, G. (2000) Cinema and Cultural Modernity. Open University Press, Philadelphia.

Horkheimer, M. & Adorno, T. W. (1972 [1948]) Dialectic of Enlightenment. Seabury Press, New York.

Jacobs, L. (1939) The Rise of the American Film. Harcourt, Brace, New York.

Jarvie, I. C. (1970) Toward a Sociology of the Cinema. Routledge & Kegan Paul, London.

Kracauer, S. (1947) From Caligari to Hitler: A Psychological History of the German Film. Princeton University Press, Princeton.

Metz, C. (1974) Language and Cinema. Mouton, The Hague.

790 Visualizações

A Knoow é uma enciclopédia colaborativa e em permamente adaptação e melhoria. Se detetou alguma falha em algum dos nossos verbetes, pedimos que nos informe para o mail geral@knoow.net para que possamos verificar. Ajude-nos a melhorar.