A autoetnografia é uma abordagem teórica, metodológica e principalmente textual, que procura experienciar, refletir e representar através da evocação, a relação do Self com o meio cultural; contrastar a experiência individual com a experiência coletiva, e assim, tentar expor as políticas da identidade e apelar para a justiça social. Ao investigar estas relações, o método autoetnográfico funde a narrativa pessoal com a exploração sociocultural. De um modo geral, a investigação e escrita autoetnográfica tem sido praticada por jornalistas e romancistas, historiadores e biógrafos, e viajantes. Contudo, o desenvolvimento e aplicação desta metodologia entre os académicos das disciplinas humanísticas é mais recente.
Como o termo sugere, a autoetnografia está alinhada com a etnografia, sendo esta última tipicamente associada ao ofício do antropólogo, e em última análise, aos escritos etnográficos que datam do século XVI. Convencionalmente, o trabalho etnográfico do antropólogo consistia em retratar as culturas como um sistema total, e por isso, subsumia a experiência individual e pessoal na unidade larga e monolítica que seria a estrutura do parentesco. Mais tarde, os praticantes do método etnográfico acabariam por questionar a possibilidade de os investigadores e escritores ocidentais representarem com objetividade e autoridade o “outro” exótico. Consequentemente, a escrita etnográfica acabaria por se tornar parcial, local, e expor os relatos pessoais sobre as culturas investigadas.
Iniciada com década de 70, e consumada na década de 80, surgiu uma enorme preocupação com a possibilidade de se conhecer, verificar e apresentar uma verdade cultural: consolidava-se assim, a crise da representação, tributária do clima de relativismo cultural que acompanhou a dita pós-modernidade. Esta crise desencadeou um repensar da forma e do propósito da investigação e descrição sociocultural, e um renovado interesse na experiência individual traduziu-se na atitude do investigador, que passou a refletir sobre o sistema cultural através da narrativa pessoal. Nestes textos autoetnográficos encontram-se relatos de ação concreta e autocrítica -elementos fundamentais do engajamento político do investigador com o contexto de análise-.
A criação de textos autoetnográficos recorre às convenções da escrita literária, como a narrativa pessoal ou a narração de factos decorridos, de modo a expor como são constituídos, apresentados, silenciados, e alterados, os sujeitos no produto final que será dado a ler. Nos textos autoetnográficos é comum haver encenações de encontros entre sujeitos, autores e leitores, que são sempre considerados como “outros” por virtude da raça, classe, género, preferência sexual, filiação religiosa, habilidade física entre outras categorias identitárias. Tais encontros são oportunidades para se testemunhar como os sujeitos são diferentemente situados, compreendidos e alterados dentro e fora de tais categorias. Por outro lado, estes encontros são também momentos propícios para se debaterem e trocarem ideias sobre modos mais justos de os sujeitos estarem no mundo.
Dados os múltiplos contextos intelectuais e socioculturais nos quais as autoetnografias emergem, e atendendo às suas preocupações e resultados, é difícil estipular um critério unificante que autorize o consenso entre os seus praticantes. Todavia, há intersecções entre esses critérios que conferem maior efetividade ao texto autoetnográfico: tal trabalho deve criar um mundo visceral, ser densamente emotivo, e apresentar uma atmosfera intelectual; criar uma relação de responsabilidade mútua entre sujeitos, autores e leitores; criar estratégias analíticas e estéticas que geram a oportunidade de se dialogar; incentivar à crítica dos sistemas e discursos dominantes existentes.
References:
Holman Jones, S. (2005) Autoethnography: Making the Personal Political. In: Denzin, N. K. & Lincoln, Y. S. (Eds.), Handbook of Qualitative Research, 3rd edn. Sage, Thousand Oaks, CA, pp. 763 91.