O racionalismo de René Descartes faz parte de um movimento, no século XVII, que representa a culminação de um processo em que se subverteu a imagem que o ser humano tinha de si próprio e do mundo. A emergência da nova classe dos burgueses determina a produção de uma nova realidade cultural e a ciência física se exprime matematicamente. Já a atividade filosófica, reinicia um novo trajeto: ela se desdobrava como uma reflexão cujo pano de fundo é a existência da nova ciência que surge.
Essa revolução científica determinou a quebra do modelo de inteligibilidade apresentado pelo aristotelismo, o que provocou, nos novos pensadores, o receio de enganar-se novamente, o que mostra que o cientista não pode confiar nas próprias habilidades intelectivas e, por isso, deve ter um método que garanta a legitimidade dos resultados.
René Descartes, inserido nesse contexto, critica tudo aquilo que aprendeu na escola. Porque não repousava em fundamentos ou princípios sólidos. Pelo contrário, limitava-se a propor conhecimentos apenas verossímeis, quer dizer, só aparentemente verdadeiros: não forneciam nenhuma certeza. Portanto para se fundar na certeza, o conhecimento deveria começar pela busca de princípios absolutamente seguros.
Para Descartes, o homem possui condições inatas para chegar a tais princípios, pois é um animal racional, possuidor de uma igualdade de bom senso ou razão, logo, todos temos a capacidade de bem julgar e de discernir o verdadeiro do falso. O homem erra por fazer mau uso da razão. Assim, o ponto de partida cartesiano para o problema do conhecimento é a busca de uma verdade primeira que não possa ser posta em dúvida.
Descartes desenvolve seu pensamento influenciado pela questão do método e pela necessidade de romper com as premissas que havia recebido em sua formação. Não se trata apenas de interpretar a natureza, mas também de tematizar a validade do conhecer. Por isso, converte a dúvida em método estabelecendo quatro regras:
– Regra da evidência, “jamais aceitar algo como verdadeiro que eu não soubesse ser evidentemente como tal”;
– Regra da análise, “dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas partes quantas possíveis e quantas necessárias para melhor resolvê-las”;
– Regra da síntese, “conduzir por ordem meus pensamentos, a começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para galgar, pouco a pouco, como que por graus, até o conhecimento dos mais complexos”;
– Regra da enumeração, fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada ter omitido”.
A etapa inicial da dúvida cartesiana é a formulação de uma dúvida metódica colocando em questão todo o conhecimento adquirido, toda a ciência clássica, todas as nossas crenças e opiniões. Para ele, toda e qualquer proposição deve ser rejeitada, caso haja o menor motivo para dúvida. Desse modo, propõe que nos esvaziemos de nossos conhecimentos e crenças, já que dentre eles há alguns que não são confiáveis, mas não sabemos quais, portanto, devemos examinar a todos.
Após estabelecer as bases do método, ele aplica o resultado sobre si – buscando analisar o que conhece com bases seguras. Assim começa duvidando de tudo:
– das afirmações do senso comum;
– dos argumentos da autoridade;
– do testemunho dos sentidos;
– das informações da consciência;
– da realidade do mundo exterior;
– da realidade de seu próprio corpo.
Para tornar a dúvida ainda mais drástica, Descartes imagina um gênio maligno, que confunde suas percepções. Porque duvidar do mundo externo, das coisas sensíveis é mais fácil do que duvidar dos elementos do intelecto. Quando o pensamento se exerce, quando o cogito, cogita, todas as vezes que isso acontece, pode existir um gênio que faça com que tudo aquilo que apareça esteja errado e tudo o que é errado pareça como certo. Essa é a hipótese metodológica (método) para a extensão da dúvida. Portanto, Descartes poderia estar sendo sempre enganado, tudo o que ele pensa poderia ser errôneo, esse Ser (o Deus enganador) cria o pensamento errôneo. A conclusão que Descartes chega é que o gênio só pode enganá-lo todas as vezes que ele pensa. Penso, logo sou(Cogito ergo sum); isto é verdadeiro. Assim o conteúdo do pensamento pode ser falso, mas não o fato de pensar. Para ser enganado é preciso estar pensando o tempo todo.
Eis aí o fundamento para a construção de todo o seu pensamento. Este “eu” cartesiano é puro pensamento, uma res cogitans (um ser pensante), pois, no caminho da dúvida, a realidade do corpo (res extensa, coisa externa, material) foi colocada em questão. Nesse momento de seu itinerário espiritual, entretanto, Descartes é solipsista. Ele só tem certeza de seu ser, isto é, de seu ser pensante (“pois, sempre duvido desse objeto que é meu corpo”; a alma, diz Descartes nesse sentido, “é mais fácil de ser conhecida que o corpo”).
É a partir da intuição primeira (a existência do ser que pensa), que é indubitável, que ele distingue os diversos tipos de ideias, percebendo que algumas são duvidosas e confusas e outras são claras e distintas. Podemos considerar uma ideia verdadeira quando ela se apresenta à nossa intuição com todas as características da evidência – ou seja, quando é clara em si mesma, muito diferente das outras e dotada de um grau de certeza capaz de superar o filtro da dúvida metódica. As ideias que possuem esses requisitos são muito simples e mesmo óbvias, mas, dentro do pensamento de Descartes, possuem uma importância extraordinária. Isso porque, dada a sua evidência, podem ser assumidas como postulados de um raciocínio científico e dedutivo. As ideias claras e distintas são ideias gerais que não derivam do particular, mas já se encontram no espírito, como instrumentos de fundamentação para outras verdades. São estas, as ideias inatas, que não estão sujeitas ao erro, pois vêm da razão, independentes das ideias que “vêm de fora”, formadas pela ação dos sentidos, e das outras que nós formamos pela imaginação. São inatas, não no sentido de já nascermos com elas, mas como resultantes exclusivas da capacidade de pensar – através da utilização da lógica e da razão. Nessa classe estão:
– a ideia da substância infinita de Deus;
– a ideia da substância finita, com seus dois grandes grupos – a res cogitans e a res extensa.
Embora o conceito de ideia clara e distinta resolva alguns problemas com relação à verdade de parte do nosso conhecimento, não dá nenhuma garantia de que o objeto pensado corresponda a uma realidade fora do pensamento, não nos garante a realidade do mundo. Para resolver tal questão, Descartes busca duas ideias inatas – a ideia de perfeição e a de infinito. Sobre a ideia de perfeição, ele escreve:
“Não posso tê-la tirado de mim mesmo, visto que sou finito e imperfeito. Eu, tão imperfeito, que tenho a ideia de Perfeição, só posso tê-la recebido de um Ser perfeito que me ultrapassa e que é o autor do meu ser. Se Deus existe e é infinitamente perfeito, não me engana.”
É a existência de Deus que garante que os objetos pensados por ideias claras e distintas sejam reais. Portanto o mundo tem realidade e dentre as coisas do mundo, o próprio corpo existe. Agora o pensamento cartesiano fundará duas verdades que residem da dúvida metódica, utilizáveis como postulados da reflexão metafísica:
– o pensamento é uma realidade em si mesmo (uma substância);
– o indivíduo humano é tanto res cogitans, quanto res extensa.
O que caracteriza a natureza do mundo é a matéria e o movimento (res extensa), em oposição à natureza espiritual do pensamento (res cogitans). Chegar ao cogito é um processo auto-evidente e partir dele é possível chegar a todas as verdades possíveis, conclui Descartes. Para que isso ocorra com segurança é importante o papel do método como instrumento que analisa, as imagens mentais ou representações da razão, e verifica a correspondência dos objetos exteriores a essa mesma razão.
de forma geral, toda a obra de Descartes visa mostrar que o conhecimento requer, para ser válido, um fundamento metafísico. O cogito é a primeira descoberta para o fundamento da metafísica e cuja evidência fornece o critério da ideia verdadeira.
Para saber mais:
References:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna 2009.
DESCARTES, René. Discurso do método. 4°ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2009.
HILTON, Japiassú e MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1996.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
REZENDE, Antônio. Curso de Filosofia para professores e alunos dos cursos de ensino médio e de graduação. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.