Mythos ao Logos, Passagem do

A passagem do Mythos ao Logos representa o nascimento da filosofia grega, e dá em um movimento que vai do ensamento mitológico (narrativa) ao pensamento filosófico (discurso) e marca o que conhecemos como nascimento da Filosofia. É uma leitura eurocêntrica e fundamenta a Grécia como local desse nascimento. quando falamos em Grécia nesse período é importante destacar que tratamos das pólis gregas.


Todo o processo é lento e gradual, além de carregado de influências históricas, culturas e epistêmicas advindas principalmente da África*. Portanto, o que vamos apresentar aqui e uma leitura sobre a relação dos gregos com a construção da Filosofia.

Um dos modos mais simples e menos polêmicos de se caracterizar a filosofia é através de sua história apresentada como nascente na Grécia antiga, por volta do sec. VI a. C.; podemos considerar que Aristóteles, no livro I da metafísica, tenha sido o ponto de partida dessa concepção, chegando mesmo a definir Tales de Mileto como o primeiro filósofo. No entanto, não podemos afirmar que não havia pensamento antes de Tales, mas que, com ele, há a inauguração de algo novo, o pensamento filosófico.

Diferentes povos da Antiguidade tiveram visões próprias sobre a natureza e maneiras diversas de explicar os fenômenos naturais, porém, “somente os gregos identificaram o princípio do pensamento filosófico-científico”, afirma Danilo Marcondes. Este princípio contrasta-se com o conhecimento mítico que lhe antecede e que pode ser identificado como uma narrativa que trata da origem de algo. Ex: origem dos astros, do universo, dos homens, do bem e do mal, da guerra, do amor etc.

As primeiras visões de mundo ou noções de gênese partiam de testemunhos míticos, há aí uma primeira análise do real onde natural e sobrenatural explicam-se um pelo outro até dar a tudo um sentido plausível, e se possível, tranquilizador. O pensamento mítico, como o denomina autores como Claude Lévi-Strauss e Jean Pierre Vernant, é uma forma de compreender e explicar situações da realidade social e natural, diferente das formas que conhecemos hoje. No mito, todas as perguntas dos homens são respondidas através das explicações passadas de geração a geração. Os poetas, cuja existência talvez seja lendária, eram escolhidos pelos deuses para essa missão e possuíam uma superioridade religiosa que os tornava responsáveis pela transmissão dos valores dentro da cultura grega.  É fundamental ressaltar que a função primordial do mito não estava em trazer uma compreensão, uma explicação da realidade, mas sim em acomodar e tranquilizar o homem em um mundo assustador. É nesse sentido que o discurso se estende por todas as dependências da realidade vivida, e não apenas no campo do sagrado.  O mito assim, surge como verdade, mas não como verdade que se dá a partir de explicações racionais em que a coerência lógica é garantida pelo rigor das argumentações e da exigência de provas. A verdade do mito é intuída, isto é, percebido de maneira espontânea, sem exigência de comprovações.

Podemos afirmar que o pensamento filosófico, por sua vez, surge da insatisfação com o tipo de explicação do real que encontramos no pensamento mítico. De fato, tal pensamento se caracteriza, até certo ponto, de forma paradoxal, porque se pretende como explicação da realidade, mas recorre ao mistério e ao sobrenatural, ou seja, exatamente àquilo que não se pode explicar. A justificativa dada pelo pensamento mítico esbarra assim no inexplicável, na impossibilidade do conhecimento. É nesse sentido que a tentativa dos primeiros filósofos da escola jônica estava em buscar uma explicação do mundo natural (a physis) baseada essencialmente em causas naturais, o que consistirá no assim chamado naturalismo.

A chave da explicação do mundo de nossa experiência estaria então, para esses pensadores, no próprio mundo e não fora dele. O mundo se abre, assim, ao conhecimento, à possibilidade total de explicação. No entanto, a ruptura com o pensamento mítico não é radical, ou seja, o surgimento desse novo tipo de explicação não significa o desaparecimento por completo do mito. Ele sobrevive, ainda que vá progressivamente mudando de função, passando a ser parte da tradição cultural do povo grego. A mudança do papel do mito grego corresponde a um longo período que se inicia na decadência da civilização micênica-cretense, por volta do séc. XII a. C. Ao longo desse período há um aumento da participação política dos cidadãos e uma progressiva secularização da sociedade.

Em termos práticos, podemos considerar que a principal contribuição dos primeiros pensadores ao desenvolvimento do pensamento filosófico encontra-se em um conjunto de noções que tentam explicar a realidade e que constituirão em grande parte alguns conceitos básicos das teorias sobre a natureza que se desenvolverão a partir de então. Dentre tais conceitos, podemos considerar a physis, motivo pelo qual Aristóteles chamará os Pré-Socráticos de physiólogos, ou seja, estudiosos da natureza. A investigação deles se dá sobre o mundo natural em uma busca pela compreensão da realidade nela própria e não fora de sua estrutura. Dentro do estudo do mundo natural há também um apelo à noção de causalidade, onde o estabelecimento de um conexão causal entre fenômenos naturais constitui a forma básica da explicação científica. É a existência desse nexo que torna a realidade inteligível e nos permite considerá-la como tal. Além disso, por possuir um caráter regressivo, o nexo causal acaba por justificar a possibilidade de se buscar uma causa sempre anterior, básica, até o infinito. Porém, surge a necessidade de se estabelecer uma causa primeira, um primeiro princípio, ou conjunto de princípios que sirva de ponto de partida para todo o processo racional. É aí que encontramos a noção de arché. Este representa o elemento primordial que serviria de ponto de partida para todo o mundo natural. A noção de arché está exatamente na tentativa de apresentar uma explicação da realidade em um sentido mais profundo, estabelecendo um princípio básico que permeia toda realidade e que, de certa forma, a unifica. Tal princípio daria o caráter geral a esse tipo de explicação.

Outra noção desenvolvida pelos primeiros pensadores é a de cosmo. Afirma Stephen Bertman, que “na língua grega, a palavra kósmos significa tanto ‘ordem’ como ‘beleza’. Beleza e ordem, então, eram consideradas sinônimos: o que era belo tinha de ser ordenado e o que era ordenado precisava ser belo.” Cosmo é assim, o mundo natural, bem como o espaço celeste, enquanto realidade ordenada de acordo com certos princípios racionais. A cosmologia passa então a explica os processos e fenômenos naturais e serve como teoria geral sobre a natureza e o funcionamento do universo.

Entretanto, antes de qualquer explicação faz-se necessário um discurso próprio, para isso os pensadores se utilizam do logos. O termo logos, que significa discurso, difere de mythos, que significa narrativa de caráter poético que recorre aos deuses e ao mistério na descrição do real. Logos, portanto, significa o discurso racional, argumentativo, em que as explicações são justificadas logicamente e imbuídas de minúcias do raciocínio diferentemente do que se via na narrativa mitologia. Ao mesmo tempo estavam sujeitas à crítica e à discussão, já que o processo do conhecimento se dava longe das verdades intuídas e inquestionáveis. Assim, as teorias aí formuladas não o eram de forma dogmática, mas passíveis de serem discutidas, de suscitarem divergências e discordâncias. Como se trata de construções do pensamento e não de verdades reveladas, estão sempre abertas à discussão, à reformulação e correções. Os processos dialógicos eram frequentes, a análise e a reformulação de hipóteses, frequentes. Escolas filosóficas, como a escola jônica, por exemplo, não eram embasadas em respostas definitivas dadas pelos mestres, mas um celeiro de debates e novas hipóteses. Estas eram estimuladas com a única exigência de que as ideias divergentes pudessem ser justificadas, explicadas e fundamentadas por seus autores, e que pudessem, também, ser submetidas à crítica. Construia-se uma forma de pensar, que a partir da possibilidade da dúvida e da crítica, buscava sempre o novo não a partir da disputa, mas do diálogo.

*outros vídeos da série sobre o Nascimento da Filosofia:

 

*Sobre o nascimento da filosofia na África, ver https://www.youtube.com/watch?v=xrBcJsrnrSw e o livro, Stolen Legacy, de George Granville Monah James).

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References:

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna 2009.

HILTON, Japiassú e MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1996.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tradução: Tania Pellegrini. Campinas: papiros, 1989.

REZENDE, Antônio. Curso de Filosofia para professores e alunos dos cursos de ensino médio e de graduação. Rio de janeiro: Zahar, 2005.

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