O mito gregoriano
A origem do canto gregoriano é frequentemente atribuída a S. Gregório Magno (540-604), papa da Igreja Católica entre os anos 590 e 604.
A primeira pessoa a associar uma acção musical a S.Gregório é João, o Diácono, cerca de 872-875, com a escrita da obra «Vita» que relata a vida de Gregório Magno. Aqui afirma-se, pela primeira vez, ter sido este papa o fundador da Schola Cantorum e o compilador do Antifonário.
Existe também a lenda segundo a qual o Canto Gregoriano terá sido inspirado por Deus directamente a S.Gregório. Tal comprova-se pela existência de iconografias datadas do século XII e seguintes, que apresentam a figura de S.Gregório com uma pomba ao ouvido a ditar a um copista os modelos gregorianos.
Não se sabe, rigorosamente, quando começou o mito gregoriano, que não vai além disso mesmo: um mito. Os factos históricos são os seguintes: S.Gregório esteve em Constantinopla, antes de ser Papa, onde teve oportunidade de conhecer a liturgia e o canto dos cristãos orientais. Durante o seu pontificado fez algumas reformas litúrgicas (simplificou alguns ritos, colocou o Pai Nosso no fim da anáfora, admitiu o uso de duas leituras, em vez de três tradicionais), mas não há qualquer referência à disciplina musical. Quanto ao Antifonário, não há qualquer garantia de que o tivesse compilado, e mesmo que assim fosse, não o teria feito com música, uma vez que não se conhece notação daquela época. No que diz respeito à Schola Cantorum, existem documentos que provam a existência de cantores organizados, já no século V.
Para além dos factos, a tradição gregoriana é tardia (a «Vita» de João, o Diácono aparece quase três séculos depois do pontificado de S.Gregório) e só se explica pelo hábito de colocar acções inovadoras sob a égide e nome de personagens famosas, como forma de dar autoridade e universalidade às inovações.
Formação do canto gregoriano
Em 754, o Papa Estêvão II procurou apoio junto de Pepino, o Breve, rei dos Francos, contra a aproximação dos Lombardos. Durante essa permanência na França, percebe a diferença de ritos e cantos ali praticada pelo que decide exortar à unidade e deixar, em território gaulês, o sub-chefe da Schola Cantorum, para ensinar a música romana.
Por sua vez, o Bispo de Metz, Chrodegang, depois da sua estada em Roma, onde tinha acompanhado o Papa, pretende introduzir o canto romano na sua cidade e constitui uma Schola à imitação da romana. De facto, Metz converter-se-á em importante centro de irradiação litúrgica e musical, durante a Idade Média.
Após a expedição militar de Pepino, o Breve, na Lombardia, pela qual restituiu a cidade de Ravenna ao Papa, o Papa Paulo III enviou ao rei dos Francos, entre outras dádivas, um Antifonário e um Responsarial, juntamente com novos cantores, encarregados de instituir os franceses.
Carlos Magno (seu sucessor e filho), sentindo a mesma divergência na disciplina litúrgica, interessou-se pela aproximação a Roma e ordenou, em 789, que os clérigos aprendessem perfeitamente o canto romano, impondo-se sucessivamente, para a Missa e para o Ofício.
A seu tempo seu tempo, chegaram de Roma mais dois cantores, trazendo o Sacramentário Gregoriano. Alcuíno (ministro de Carlos Magno) e outros mestres, entre eles Amalario, Bispo de Metz, e Agobardo, Bispo de Lyon, copiaram esses livros. O resultado de tais acções foi uma liturgia enculturada ou um compromisso entre ambas as tradições; um canto litúrgico fundamentalmente romano, com marcas galicanas, muito definidas.
A notação gregoriana
Até ao século IX, o cantochão desconhecia qualquer sistema de notação dado que era uma simples tradição oral. Isso implicava um respeito sagrado pela tradição, de que só alguns especialistas podiam assumir a responsabilidade. E sabe-se que não era fácil assumir o papel de cantor solista porque este precisava de cerca de 10 anos para memorizar todo o repertório litúrgico.
É evidente que os sábios medievais conheciam sistemas de notação antiga, pelo menos, a praticada entre os Gregos. Talvez não fosse muito fácil adaptá-la, sobretudo para um tipo de música adornada ou melismática. Contudo, quando o repertório se alargou excessivamente e era necessário manter a uniformidade em regiões distintas, começaram-se a utilizar alguns sinais que tinham como propósito ajudar a memória do cantor. A esses sinais, ou acentos com função musical, chamavam-se neumas.
Os neumas começam a utilizar-se no século IX e aparecem, originalmente, sem qualquer referência interválica definida, por cima da palavra ou da sílaba. Tendo-se descoberto a vantagem de uma linha orientadora, no princípio do século XI, os neumas aparecem em torno de duas linhas: uma vermelha, a indicar o fá, e outra amarela, a indicar o dó. Estas cores eram confirmadas, ainda, com as letras F e C, que se transformariam em verdadeiras claves na futura pauta. Em meados desse mesmo século, existe já a pauta de quatro linhas, que ficaria identificada com a notação gregoriana e que permite uma definição interválica bastante perfeita.
Deve-se a Guido d’Arezzo a sistematização destas experiências de notação, bem como o achado dos nomes das notas, tiradas do hino de S.João Baptista: Ut queant laxis / Resonare fibris / Mira gestorum / Famuli tuorum / Solve polluti / Labii reatu / Sancte Ioannes.
Processos de formação do canto gregoriano
Distinguem-se, na música gregoriana, três processos bem claros:
1. Processo original: a melodia é composta, originalmente, por um determinado texto. Neste caso, é este quem condiciona a expressão musical. Este processo emprega-se, frequentemente, na composição de Introitos, Ofertórios e Comunhões.
2. Processo de melodias-tipo: não se cria uma melodia nova, mas aplica-se um novo texto a modelos do passado, com as adaptações indispensáveis. A expressão, neste caso, não depende só do texto, mas também do modelo passado.
3. Processo centónico: utiliza-se, agora, material pré-existente, mas este não é, agora, uma melodia-tipo completa, mas simples fórmulas, ou células, que se podem dispor adequadamente à maneira de mosaico sonoro, para uma peça bem proporcionada.
Géneros e formas gregorianas
O canto gregoriano possui três géneros e estes, consequentemente, constituem-se por formas.
Género estrófico: feito sobre uma base estrófica, isto é, em que uma mesma melodia se aplica sucessivamente a diversas estrofes. Inclui duas formas: o hino (forma monostrófica [uma só estrofe], utilizada no Ofício com celebrações para litúrgicas) e a sequência (forma polistrófica [estrofes que podem ser algo diferentes entre si], utilizada na Missa).
Género salmódico: todo o espécime gregoriano construído sobre um salmo (canto acompanhado por instrumentos de corda) e, de uma outra forma, dependente da fórmula salmódica (corresponde ao suporte melódico de cada salmo).
Género monológico: corresponde ao repertório dos monólogos ou diálogos das celebrações, normalmente em estilo silábico e em forma de recitativo. Entram neste género as orações, as leituras, o prefácio da Missa e, ainda, alguns diálogos entre os ministros celebrantes e a assembleia. Como a forma de recitativo deixa entender, não se trata de um canto, propriamente dito (concentus), mas de uma cantilação, essencialmente dependente dos sinais de pontuação (accentus).
Estilos de composição
À semelhança dos processos de formação e dos géneros, também se contam três estilos.
Estilo silábico: a cada sílaba corresponde, normalmente, uma só nota musical, embora por vezes alternadas com neumas de duas notas. É utilizado em muitos hinos e em quase todas as antífonas do Ofício.
Estilo neumático (ornamentado): na composição prevalecem neumas de duas, três e mais notas, sobre cada sílaba do texto. É o estilo normal da Missa, de alguns hinos, mais solenes, e de algumas missas do Kyriale.
Estilo melismático (florido): é o estilo utilizado em composições em que a uma sílaba corresponde um neuma longo, composto de muitos elementos neumáticos. Utiliza-se, sobretudo, no Tracto, Gradual e Aleluia da Missa, e, ainda, em alguns Responsórios de Matinas. Pelo seu carácter especial, os melismas do Aleluia da Missa são chamados Jubilus, que corresponde ao próprio sentido da palavra.
A teoria gregoriana
O sistema teórico gregoriano está na base a tonalidade, da harmonia e das grandes correntes de música ocidental. Os seus pontos essenciais são os modos, os hexacordes e o ritmo.
Os modos
Sistematizados no século IX por Aurelianus Reomensis e Odo de Cluny, os modos supõem um repertório variado e suficientemente aprovado pela prática. Na passagem do século IX para o X assumiram os nomes das escalas gregas, através da teoria de Boécio, mas um erro motivou a falsa identificação do dórico: era a escala de mi na Grécia e passou a Ré na música medieval.
Os elementos que caracterizam o modo gregoriano são:
- A finalis: nota de repouso, final (espécie de tónica).
- A tenor: nota melódica principal (espécie de dominante).
- O ambitus: extensão ou escala – normalmente uma oitava, mas eventualmente acrescida de uma nota inferior e duas superioras.
Existem oito modos, quatro autênticos e quatro plagais. Os modos plagais são obtidos através do deslocamento do âmbito a uma quarta inferior.
Os hexacordes
Conjunto de seis notas, base do sistema tonal gregoriano. No repertório gregoriano é rara a peça que permanece dentro de um só hexacorde. Normalmente acontecem mutationes (mutações), por exemplo, mudanças de um hexacorde para outro, que são verdadeiras modulações tonais.
O ritmo gregoriano
Ao contrário do que pode pensar, ritmo livre não significa arrítmico. A ordem rítmica do canto gregoriano exprime-se através de uma curva ou arco formado, basicamente, por uma elevação e um repouso (arsis/tesis), e que se verifica de uma forma crescente e envolvente. A relação de arsis e tesis estabelece-se sobre as unidades elementares binários e ternários, de um valor considerado indivisível, identificados pelo ictus.
Ainda na dimensão teórica do Canto Gregoriano, importa referir a existência de verdadeiras cadências.
References:
Borges, M.J. & Cardoso, J.P. (2008). História da Música Vol I. Sebenta Editora.