O conceito de jihad é um dos mais frequentemente referidos nos últimos anos quando se fala de islão. Associado geralmente à ideia de combate encontramos, no entanto, aqueles que enfatizam a distinção entre o que referem como “pequena” e “grande” jihad, a primeira referida à luta pela fé e a segunda ao combate interior pelo aperfeiçoamento individual. Existe ainda quem refira ser a jihad um dos pilares do islão, ao lado dos cinco convencionais. Esta visão é, naturalmente, partilhada pelas organizações jihadistas. A palavra é de origem árabe e possui o “significado literal de ‘esforço’, ‘combate’ ou ‘luta’. No Alcorão, e ainda mais nas Tradições, tem sido entendido como ‘fazer guerra’, de uma maneira geral, mas não sempre, seguido pelas palavras ‘no caminho d Deus’. As grandes colecções de hadith contêm todas uma secção devotada à jihad, na qual predomina o significado militar. O mesmo é verdade dos manuais clássicos da lei sharia. Houve quem argumentasse que a jihad deveria ser compreendida em termos morais e espirituais, em vez de militares. Tais argumentos eram, geralmente, levantados por teólogos xiitas na época clássica e, mais frequentemente, por modernizadores e reformistas dos séculos XIX e XX. A esmagadora maioria dos teólogos, juristas e tradicionalistas clássicos entenderam, contudo, o compromisso da jihad dando-lhe um sentido militar, e examinaram-na e interpretaram-na de acordo com este sentido” (Lewis, 2001: 105-106). Assim, vemos que a jihad é, essencialmente, uma luta de cariz militar com vista à expansão do islão, o que vai de encontro ao facto desta ser uma fé que se expandiu, desde o início, pela força das armas. Nesse contexto, constitui uma obrigação de todos os homens válidos. Assim, “ de acordo com os ensinamentos muçulmanos, a jihad é um dos mandamentos básicos da fé, uma obrigação imposta a todos os muçulmanos por Deus através da revelação. Numa guerra ofensiva, é obrigação da comunidade muçulmana enquanto todo (fard kifaya); numa guerra defensiva, torna-se uma obrigação pessoal de todos os homens muçulmanos adultos (fard ‘ayn). Numa situação como esta, o governante muçulmano pode emitir um apelo às armas (nafir ‘amm). A base da obrigação da jihad é a universalidade da revelação muçulmana. A palavra de Deus e a sua mensagem são destinadas a toda a humanidade; é o dever dos que aceitaram a luta (jahada), de converter ou pelo menos de subjugar aqueles que não o fizeram” (Lewis, 2001: 107). Sendo que esta obrigação não é definida temporalmente, não tem limites, na medida em que o único limite é a conversão universal. É por isso que, até esse dia, “ o mundo estará dividido em dois: a Casa do Islão (dar al-Islam), onde os muçulmanos governam e a lei do islão prevalece; e a Casa da Guerra (dar al-Harb), compreendendo o resto do mundo. Entre os dois existe um estado de guerra moralmente necessário, legal e religiosamente obrigatório, até ao triunfo final e inequívoco do Islão sobre a descrença. Segundo os livros de direito, este estado de guerra pode ser interrompido, quando necessário, por um armistício ou por tréguas de duração limitada. Não pode ser terminada por uma paz, mas apenas por uma vitória final” (Lewis, 2001: 106). Este é um ponto particularmente relevante, na medida em que demonstra uma realidade muitas vezes esquecida, a de que a ausência da guerra, do conflito armado, não significa necessariamente paz. Há muitas formas de expandir a fé e colocar em prática a doutrina. E, nesse aspecto, a riqueza fornecida pelo petróleo e gás natural tem permitido a diversos países do mundo islâmico, com a Arábia Saudita á cabeça, uma propagação efectiva da fé islâmica que passa pelo apoio a grupos armados, pelo financiamento de universidades no mundo ocidental, pela aquisição de activos importantes no campo económico ou pelo financiamento de mesquitas e escolas corânicas um pouco por todo o mundo. Na actualidade, há diversas formas de fazer a jihad, nem todas necessariamente violentas ou histriónicas.
- O discurso jihadista.
O moderno discurso jihadista, pelo menos aquele mais estridente, tem apontado ao Ocidente, essencialmente. Mas existem outros alvos bem definidos, desde logo os regimes islâmicos considerados corruptos e, na perspectiva do jihadismo militante, não-islâmicos. É por essa razão que grande parte das acções armadas levadas a cabo por grupos jihadistas têm sido dirigidas contra tais regimes e populações sob a sua alçada, vistas por vezes como apóstatas. Esta situação tem dado origem a divergências entre diferentes grupos, com alguns a encontrarem legitimidade nas acções que visam a população enquanto outros as condenam. Ambos estão, no entanto, de acordo quanto ao facto da necessidade de não dar tréguas aos regimes considerados ímpios. Esta situação tem sido particularmente visível no conflito iraquiano. Após a invasão das forças da coligação, lideradas pelos norte-americanos, em 2003, e após a formação de grupos insurgentes, o dilema colocou-se. Afiliado à Al Qaeda, Abu Musab al-Zarqawi acabaria por se incompatibilizar com boa parte dos seus apoiantes, agastados com os sucessivos massacres levados a cabo pela organização e que, a partir de certa altura, deixaram igualmente de gozar do apoio das cúpulas da organização de Osama bin Laden. O sucessor próximo da organização de al-Zarqawi, o Estado Islâmico, tem repetido práticas idênticas visando essencialmente populações xiitas. Desta vez, o apoio popular não tem sido alienado, entre outras razões, devido ao ressentimento das bases sunitas apoiantes do estado Islâmico, alvo de constantes discriminações por parte dos governos de maioria xiita entretanto constituídos.
Para lá destas dissensões e oposições, em comum aos grupos jihadistas existe, como referido, o desejo comum de combate aos regimes ditos apóstatas. É um dos eixos da acção jihadista desde há muito, como é exemplo o assassinato do antigo presidente egípcio, Anwar al-Sadat, em 1981 na sequência do processo de paz com Israel. O que tem sido novo é a hostilidade efectiva contra os regimes ocidentais, uma hostilidade iniciada, em certa medida, pela Al Qaeda e replicada pelo Estado Islâmico. É certo que já antes se haviam verificado acções terroristas em solo europeu, mas tratava-se geralmente de actos mais ou menos isolados, quase todos em relação com o conflito israelo-palestiniano, o que não sucede actualmente apesar da retórica da Al Qaeda continuar a fazer referência à Palestina. Foi, em parte, esta mudança de paradigma que motivou a notoriedade do grupo de bin Laden, o qual apresentou aqui uma rutura com o seu mentor Abdullah Azzam, o qual defendia uma jihad local, contra os regimes atrás referidos e não contra o Ocidente. Esta divergência permanece recorrente na história do movimento jihadista das últimas décadas: “Até 1996, a definição do inimigo prioritário e do rumo a seguir não era consensual. Numa primeira fase, passou para segundo plano a luta pela libertação de Jerusalém, tão cara a Abdullah Azzam. Tornou-se também secundário o combate à opressão dos regimes seculares de países maioritariamente muçulmanos, tão cara aos jihadistas egípcios. Israel e os regimes pan-arabistas foram superados pelos EUA e pelos aliados – uma retórica alheia aos parâmetros habituais do islamismo armado (…). Numa segunda fase houve um regresso à retórica local e regional. A descentralização do ‘centro de gravidade’, em favor das afiliadas regionais, acontece essencialmente em zonas de conflito de retórica jihadista. Aí acaba por haver uma fusão com as agendas políticas locais, sendo que o inimigo volta, uma vez mais, a ser o statu quo local. O contexto revolucionário da ‘Primavera Árabe’ favoreceu este regresso, nomeadamente se tivermos em conta a resistência de alguns líderes seculares” (Duarte, 2015: 138-139). Sendo que, no caso líbio, a queda do ditador secular apenas ocorreu após a intervenção aérea de países membros da NATO, e num momento em que as forças governamentais dispunham de uma assinalável superioridade sobre os insurgentes no terreno de batalha.
- Nomes da Jihad.
Actualmente, quando falamos no conceito de jihad surgem-nos à memória alguns nomes fundamentais, quase todos eles relativamente recentes. No entanto, existem outros absolutamente decisivos e que forjaram o conceito e as suas aplicações. Na época clássica há a destacar Ibn Taymiyya (séculos XIII-XIV). Escrevendo na época em que a comunidade de crentes se encontrava ameaçada pelo poderio mongol, acabou por gerar uma interpretação que teria repercussões no século XX acabando por ser um percursor dos jihadistas modernos, se não nos métodos pelo menos nas ideias. “Defendia que o seu fim (do califado) resultava de uma corrupção do Islão e acreditava que voltar às crenças e práticas da comunidade muçulmana primeva levaria a um renascimento do mundo muçulmano. Como Ibn Taymiyya, muitos muçulmanos salafitas acreditam hoje que os infortúnios do mundo muçulmano foram causados por uma corrupção do Islão, e que o seu renascimento constitui uma correção essencial” (Berger, Sterner; 2015, 303). Já no século XX encontramos uma plêiade de nomes que se destaca: Hassan al-Banna, Sayyd Qutb, Abdullah Azzam. Para eles, o conceito de jihad na sua componente bélica assume um papel fulcral. Os dois primeiros, centrais na fundação e afirmação da Irmandade Muçulmana, acabarão por influenciar gerações posteriores de combatentes, seja contra regimes árabes considerados “apóstatas”, seja contra potências exteriores. “No contexto do salafismo jihadista, jihad refere-se mais frequentemente à guerra física ou à luta armada. É esta definição particular de jihad que Mawdudi e Qutb invocavam, e é em relação ao apelo a este tipo de jihad que eles divergem. Mawdudi não objetava à violência por princípio e muito do seu projeto não parece revolucionário. De facto, contudo, ele defendia uma abordagem metódica e preferia as soluções políticas às violentas (…) Qutb, pelo contrário, adotou uma abordagem mais agressiva. Criticava a ideia de que os governos corruptos pudessem ser mudados de dentro do sistema e em vez disso advogava a revolução. Contudo, ele compreendia a jihad militante como meramente parte da solução e insistia em que fosse acompanhada por uma reeducação interna. Apesar da sua reputação como fundador do jihadismo moderno, não defendia a violência indiscriminada” (Berger, Stern, 2015: 312). A guerra no Afeganistão, após a invasão soviética, servirá de catalisador para muitos desses elementos e de campo de aprendizagem para posteriores acções. Terminado o conflito, muitos regressarão aos seus países, com o prestígio da vitória alcançada sobre uma superpotência, e acabarão por se envolver na luta contra os governantes locais. O caso da Argélia é, nesse ponto de vista, paradigmático. “A fação jihadista fundiu-se em grande parte devido à guerra nos anos 1980 contra os soviéticos, no Afeganistão. A guerra funcionou, infelizmente, como uma ‘perigosa incubadora’, durante a qual os salafitas de toda a região entraram em contacto – por vezes em campos de batalha reais, noutras em campos de treino militar – com grupos radicalizados, que acreditavam que a violência poderia ser uma solução para alguns problemas que o mundo muçulmano enfrentava. Tal como os salafitas políticos e os salafitas quietistas, os salafitas jihadistas estavam preocupados com a corrupção do Islão e a opressão do mundo muçulmano” (Berger, Stern, 2015; 308). O Afeganistão foi, portanto, a escola para muitos radicais. Entre eles sobressaem os nomes de Osama bin Laden e do seu mentor, Abdullah Azzam. O primeiro, chegado em finais dos anos oitenta, acabaria por ser o centro de uma constelação jihadista que se tornou famosa pelos ataques do 11 de Setembro, nos EUA, mas que já antes se destacara pelos atentados contra as embaixadas norte-americanas no Quénia e na Tanzânia e pelo ataque ao contratorpedeiro USS Cole, no porto iemenita de Adem, no ano 2000. O segundo, em boa parte mentor ideológico do saudita, acabaria assassinado em Peshawar, no Paquistão, em 1989 num atentado de contornos nunca totalmente esclarecidos e que diferentes versões atribuem a diferentes actores.
Comum a todos estes actores é o tradicionalismo. Só com o regresso às fontes primevas se conseguirá restaurar a grandeza de outrora. “Sur le plan politique, la pensée salafiste demeure tradicionnelle. On ne trouve pas de condamnation globale des gouvernements musulmans existants. L’État, comme instance du politique, reste devalué: is est instrumental, distincte de l’oumma, qui este n deçà (société civile) et au-delà de lui (communauté de tous les musulmans). Son seul rôle est de faire appliquer la charia. Mais la pensée salafiste est hantée par la réhabilitation du califat. Au début du XXe siècle, le califat ottoman, pourtant moribond, connâit un retour de popularité dans les milieux musulmans non arabes” (Roy, 2015: 56). O sonho de reconstrução do califado assumiu uma dimensão nunca antes alcançada com a proclamação do mesmo, feita pelo líder do Estado Islâmico, no ano de 2014.
References:
Berger, J. M., Stern, Jessica, Estado Islâmico – estado de terror, Lisboa, Vogais, 2015.
Duarte, Felipe Pathé, Jihadismo Global – das palavras aos actos (al-qaeda, estado islâmico e o império do terro), Queluz de Baixo, Marcador, 2015.
Gillon, Jihâd, Marbot, Olivier, Tout sur l’État Islamique in La Revue, pp.18-32, nº55-56, Septembre-Octobre, 2015.
Lewis, Bernard, A Linguagem Política do Islão, Lisboa, Colibri, 2001.
Lewis, Bernard, O Médio Oriente e o Ocidente – o que correu mal?, Lisboa, Gradiva, 2003.
Napoleoni, Loretta, A Fénix Islâmica – o Estado Islâmico e a reconfiguração do Médio Oriente, Lisboa, Ítaca, 2015.
Roy, Olivier, L’Échec de l’Islam Politique, Éditions du Seuil, 2015.