Fascismo

Fascismo: o que é, quais as suas origens, quais os elementos caracterizadores, Mussolini e o fascismo, diferentes tipos de fascismos, fascismo em Portugal,…

Introdução – o que é o Fascismo

O Fascismo pode ser definido como um sistema político autoritário que vigorou na Itália entre 1922 e 1943. Caracteriza-se por uma concepção totalitária do Estado, ao qual se subordinam aspectos essenciais da vida dos indivíduos. O fascismo é uma ideologia revolucionária e anti-burguesa. Tendo na sua génese elementos diversos, que vão do idealismo hegeliano ao romantismo de Nietzsche, o fascismo influenciará diversos movimentos europeus nos anos vinte e trinta.

“O que é o fascismo? É certamente o fenómeno mais enigmático e mais discutido do século XX. Quem não foi apelidado de ‘fascista’ em França, na Europa e noutras partes do mundo desde que em 1923 o Komintern denunciou o fascismo italiano como o inimigo número um, apelando à mobilização ‘anti-fascista’? A hidra nunca mais deixou de alimentar os fantasmas mais extravagantes. Logo nos primeiros anos do século XXI, a propósito do regime dietético draconiano imposto a si mesmo para perder a gordura e recuperar uma silhueta de rapaz novo, o célebre costureiro Karl Lagerfelg classificou-se de ‘auto-fascista’. Um auto-fascista é um indivíduo que impõe a si próprio uma disciplina severa mas não a impõe aos outros. De certa maneira, é portanto o contrário de um fascista. Partilha, no entanto, uma mesma estética e a mesma moral pessoal. É um partidário da magreza contra a gordura. Uma definição tão boa como outra qualquer.”

Venner, 2009.

Origens do Fascismo

Consideradas as suas origens mais remotas, o fascismo surge como reacção contra a herança da modernidade. Ou melhor, parte dessa herança, aquela constituída pela filosofia do Iluminismo que, por sua vez, vai beber ao racionalismo seiscentista: “Não é por acaso que, desde finais do século XIX, Kant e Rousseau são o principal objecto da vindicta de todos os inimigos da modernidade (…) é sempre o século XVIII que arca com a responsabilidade pela decadência e a decomposição (…). Na verdade, segundo Nietzsche, a modernidade provém de uma única fonte: a moral dos escravos que ‘é essencialmente uma moral da utilidade’ e que tenta camuflar-se sob as diferentes designações de humanismo, progresso, altruísmo, igualitarismo, hedonismo, utilitarismo, eudemonismo. Em termos políticos chama-se-lhe democracia, liberalismo, socialismo. Em termos ainda mais gerais (…) chama-se-lhe decadência. De uma maneira ou de outra, essas ideias serão retomadas por Barrès, Sorel, Maurras, Spengler, Hulme, Ortega, Carl Schmitt, Drumont, Langbehn, Moeller Van Den Bruck e muitos outros” (Sternhell, 1999), todos eles fascinados pela ideologia da decadência que caracteriza, na sua opinião, o século da descaracterização, da perda da identidade. Uma ideia retomada também na literatura da época e que se prolonga até ao século XX, de Edgar Allan Poe (no conto O Homem da Multidão) a Robert Musil (O Homem Sem Qualidades). Paralela a esta imagem encontra-se a de que só uma elite salvadora (reminiscências gnósticas?) poderá guiar a multidão, esse grande animal irracional, e orientá-la para o melhor.

“Porém, é sobretudo à obra histórica de Hipollyte Taine que vão beber os teóricos das elites. Para Taine, a Revolução Francesa assume as dimensões de um verdadeiro desastre cultural: explica-se pela vingança dos pequenos e fracos sobre os grandes e poderosos, por uma reacção plebeia contra os senhores naturais. A queda da velha França foi consequência da demissão das elites perante a vil populaça” (Sternhell, 1999). Democracia, humanismo, materialismo, uma tríade demoníaca combatida por estes e outros autores nos quais se filia Mussolini quando “em 1932, definia o fascismo como uma revolta contra o ‘positivismo materialista e fraco do século XIX’” (Sternhell, 1999).

No imediato, o fascismo nasce no após-Primeira Guerra Mundial entre aqueles que combateram e se julgavam capazes de formar uma nova elite, uma aristocracia do espírito embebida das lições de Nietzsche e Sorel. Nasceu também da reacção contra a ameaça bolchevista, mas foi muito mais que isto, muito mais que uma simples resposta contra uma ameaça pressentida como real: “ Como fez notar François Furet: ‘O fascismo não nasceu apenas para vencer o bolchevismo, mas para romper para sempre a divisão do mundo burguês’. E foi exactamente assim que o compreenderam muitos contemporâneos, que viram na experiência original do fascismo italiano não só uma resposta vitoriosa ao comunismo mas também uma resposta à crise que atravessava a sociedade liberal” (Venner, 2009).

O Fascismo – Elementos Caracterizadores

“A ideologia fascista é uma combinação entre um socialismo nacional e antimarxista que pretende solucionar os conflitos sociais impondo soluções producionistas e corporativas a partir do estado forte e de um nacionalismo radical, revolucionário, mobilizador de massas, ativista, heroico e expansivo, isto é, imperialista” (Sznajder, 2010). Eis uma definição possível, entre outras. Mas que necessita de aprofundamento.

“De todas as grandes ideologias do século XX, a ideologia fascista é a única a nascer com o século” (Sternhell, 1995). Uma ideologia que se configura como terceira via entre o liberalismo e o socialismo marxista e que deixará marcas profundas no imaginário e na prática política. Nascido, como foi dito, na ressaca da Primeira Guerra Mundial mas com raízes profundas no pensamento pré-guerra e mesmo novecentista, recupera da tradição a fidelidade às raízes e da modernidade a crença no progresso que partilha com o socialismo (numa de muitas familiaridades). Também do passado, mas este mais recente, assume a crença no estado-nação e do Futurismo o gosto pelo perigo, pela velocidade e pela técnica. Mas, com isto, não é apenas uma amálgama de tradições e alinhamentos mais ou menos agrupados com vista a um produto final, tal como não é um irmão-gémeo do nacional-socialismo apesar da colagem insistente que lhe é feita, sobretudo pelos adversários ideológicos, aproveitando aquele que terá sido o maior erro de Mussolini, o da aliança com o ditador alemão. “Com efeito, o fascismo foi uma força de ruptura, capaz de dar assalto à ordem estabelecida e de competir eficazmente com o marxismo no espírito e no favor quer dos intelectuais, quer das massas” (Sternhell, 1995). É essa dimensão de ruptura, é essa força e essa violência personificada nos herdeiros dos arditi que distingue, entre outros elementos, o fascismo do Estado Novo português. Onde Salazar coloca como referência o “viver habitualmente”, o fascismo coloca a velocidade, a aventura e a beleza da máquina, tão singularmente expressa na hora da morte daquele que é, provavelmente, o mais notável dos fascistas portugueses, Homem Cristo Filho, vítima de acidente de automóvel quando se dirigia para um encontro com Mussolini.(1)

Uma tese defendida por Ernst Nolte vê no fascismo “uma espécie de sombra projectada do marxismo” (Sternhell, 1995). Zeev Sternhell prefere ver nele uma revisão daquele: “Se a ideologia fascista não pode ser definida em termos de uma simples resposta ao marxismo, o seu nascimento, pelo contrário, representa o resultado de uma revisão muito especial do marxismo. Revisão do marxismo e não variedade do marxismo, nem sombra projectada do marxismo (…). É indispensável insistir neste aspecto essencial da definição do fascismo. Porque a cristalização dos conceitos fundamentais do fascismo, da filosofia e da mitologia fascistas, torna-se dificilmente inteligível se nos recusarmos a percebê-la também em função desta revolta de origem marxista contra o materialismo. São os sorelianos da França e da Itália, teóricos do sindicalismo revolucionário, que lançam esta nova e original revisão do marxismo: é nisto, precisamente, que consiste a sua contribuição para o nascimento da ideologia fascista” (Sternhell, 1995). Essa ligação ao marxismo, seja sob a forma de revisão como defende Sternhell ou outra, é visível no percurso de Mussolini e de outros socialistas que transitaram ou estiveram ligados ao nascimento da ideologia. Paradigmático foi o caso de Nicola Bombacci: fundador do Partido Comunista Italiano (PCI) com Antonio Gramsci, será mais tarde um incondicional de Mussolini e estará com ele nos anos finais da República Social Italiana. Em 1943, depois do golpe que afasta Mussolini do poder, manifesta-lhe apoio nos seguintes termos: “a vil traição do rei e de Badoglio trouxe de forma completa a ruína e a desonra sobre a Itália, mas libertou-vos dos compromissos pluto-monárquicos de 1922” (Nordling, 2013). Ou seja, agora abria-se a possibilidade de realização do verdadeiro socialismo, terminadas as ligações aos sectores conservadores e proprietários. Se antes a necessidade de compromisso tolhera os princípios revolucionários do fascismo, eis que surgia o momento de os colocar em prática, tal como virá de facto a suceder. E Nicola Bombacci será fuzilado a 28 de Abril de 1945, juntamente com outros elementos fascistas que cairão gritando “Viva a Itália” enquanto ele optará por um “Viva o socialismo”. Ainda sobre Mussolini, dele diria Lenine (quando alimentava esperanças sobre a emergência da revolução socialista italiana) que “em Itália, camaradas, em Itália só há um socialista capaz de conduzir o povo à revolução, Benito Mussolini” (Nordling, 2013). O mesmo Lenine que dissera de Gabriele D’Annunzio tratar-se de um revolucionário. O mesmo D’Annunzio que influenciou Mussolini e tanto impressionou António Ferro na sua aventura de Fiúme.

Revolução, houve-a de facto. Talvez não no sentido profetizado pele líder bolchevique, mas chefiada por Mussolini e com claros traços marxizantes, pelo menos no dizer de Montero Díaz, fazendo eco de Curzio Malaparte para o qual “a táctica seguida por Mussolini para tomar o Estado não poderia ter sido concebida por mais ninguém senão um marxista. Não podemos nunca esquecer que a educação de Mussolini é marxista” ( Nordling, 2013).

E há muito de Marxismo no acto fundacional dos Fasci di Combattimento, em 1919, apesar das concessões e compromissos posteriores – mas não teve Lenine, igualmente, de ceder ao ponto de ver florescer uma burguesia de novos-ricos que enxameava Moscovo durante o período da Nova Política Económica? -: “republicanismo, sufrágio universal, abolição dos títulos de nobreza, a dissolução das entidades financeiras privadas, apoio da superioridade do valor-trabalho comparado ao valor-dinheiro, reforma agrária, solidariedade internacional contra o imperialismo. Isto não impediu o fascismo de agitar a bandeira do perigo vermelho para atrair os sectores anti-bolcheviques mais sensíveis da sociedade italiana. Não houve nenhuma contradição neste discurso, mesmo que os antigos companheiros do Duce o catalogassem como ‘traidor’, sendo que ele viu o fascismo como uma superação, uma Terceira Via, tanto da Direita como da Esquerda, e embora ele nunca renegasse as suas origens socialistas, estava plenamente convencido de que as tinha ultrapassado. Sobre esta matéria, Mussolini até escreveu que ‘no grande rio do Fascismo podem encontrar-se as correntes que brotam de Sorel, do Movement Socialiste de Lagardelle, de Péguy, e da corte dos sindicalistas italianos’” (Nordling, 2013).

É óbvio que, quando toma o poder, Mussolini enfrenta a necessidade de compromissos. E isso fá-lo congelar parte da sua agenda revolucionária. Em política faz-se o que se pode, não o que se deseja. (2). O que leva sectores mais radicais do partido a protestarem contra o líder. E “os intransigenti, como foram chamados os fascistas que exigiram a Mussolini que levasse à prática a revolução pendente (um vocabulário que, curiosamente, seria assumido em Espanha pelos falangistas descontentes com o regime franquista), foram praticamente defenestrados ou incorporados (de novo as similaridades com Espanha são evidentes) no estado fascista antes do fim dos anos de 1920” (Nordling, 2013).

Mas a partir de Setembro de 1943, durante os pouco mais de vinte meses da República Social Italiana, a ala mais à esquerda do Partido Fascista conhecerá uma nova vitalidade. Agora já não há rei, não há potentados industriais, plutocratas a quem agradar ou com quem condescender. Agora pode-se voltar aos dias iniciais da ideologia. E é talvez o retorno a tal origem que explica a adesão a uma causa que se afigura como perdida. São 250.000 membros que aderem ao novo partido e, em 1944, serão quase meio milhão. Curiosamente (ou talvez não), este aspecto do fascismo seria reproduzido em Portugal pelo nacional-sindicalismo. O slogan “queremos que os ricos sejam menos ricos para que os pobres sejam menos pobres”, de Rolão Preto, não destoaria num comício pós-ditadura.

Por tudo isto e mais “ … todo o que persista em não ver no fascismo senão um subproduto da Grande Guerra, um simples reflexo da defesa da burguesia face à crise do após-guerra, está condenado a nada compreender deste fenómeno capital do nosso século. Fenómeno de civilização, o fascismo encarna a recusa ao mais alto grau da cultura política dominante no começo do século. No fascismo de entre-as-duas-guerras, no regime mussoliniano tal como em todos os outros movimentos fascistas da Europa ocidental, não há uma única ideia importante que não tenha sido amadurecida ao longo de todo o quarto de século que precede Agosto de 1914” (Sternhell, 1995).

Mas se o fascismo representa uma “recusa da cultura política dominante no começo do século” não se pode dizer o mesmo face a outros elementos da cultura ocidental. Ele é, claramente, um produto da modernidade e partilha com o marxismo a crença no progresso. Embora, com o nacional-socialismo, se oponha ao racionalismo iluminista não desdenha as suas raízes históricas mais remotas, mesmo que o possa fazer de forma menos consciente. “Os movimentos da direita radical surgidos no período entre-guerras não eram ‘inimigos da civilização ocidental’ em grau tão elevado quanto os seus rebentos ilegítimos. Os fascistas e os nazis experimentavam apenas repulsa pelo cepticismo e pela tolerância iluministas, e muitos deles desprezavam o cristianismo. Mas – ainda que perversamente – Hitler e os seus seguidores comungaram da fé iluminista no progresso humano, que fora ateada pelo cristianismo.” (Gray, 2007).

O fascismo não é, portanto, contra-revolucionário ou reacionário no sentido genérico. O mundo de Joseph de Maistre é muito diferente do de Mussolini e no século XX italiano não existe lugar para ele. Algumas das categorias essenciais da modernidade, como sejam o progresso e a secularização encontram acolhimento na doutrina do fascismo (3). Mais do que uma mera reacção ao liberalismo, ao marxismo e à democracia o fascismo representa uma proposta concreta de construção da sociedade e de um novo tipo de homem, ou talvez de super-homem (não é por acaso que Hitler oferecerá um exemplar das obras completas de Nietzsche a Mussolini durante um dos seus encontros). O modelo do fascismo terá o entusiasmo de Marinetti e o talento de Gabriele D’Annunzio.

Temos então a ideologia fascista como “produto de uma síntese de nacionalismo orgânico e da revisão antimaterialista do marxismo” (Sternhell, 1995) exprimindo “uma veleidade revolucionária baseada na recusa do individualismo, de faceta liberal ou marxista” (Sternhell, 1995). Em troca oferece “uma cultura política comunitária, anti-individualista e anti-racionalista, fundamentada, numa primeira fase, na recusa da herança das Luzes e da Revolução Francesa e, num segundo tempo, na construção de uma solução de mudança total, de um quadro intelectual, moral e político que seria o único capaz de assegurar a perenidade de uma colectividade humana onde se integrariam perfeitamente todas as camadas e todas as classes da sociedade. O fascismo pretende apagar os efeitos mais desastrosos da modernização do continente europeu, quer remediar a fragmentação da comunidade em grupos antagonistas, a atomização da sociedade, a alienação do indivíduo, transformado em simples mercadoria lançada no mercado. O fascismo ergue-se contra a desumanização introduzida pela modernização nas relações humanas, mas entende preservar ciosamente todos os benefícios do progresso e jamais prega o regresso a uma hipotética ‘idade do ouro’”(Sternhell, 1995). É todo um programa que partilha, pois, elementos comuns com o dito inimigo, o marxismo. Tal como comunga de pontos de contacto com o islão político mostrando que os totalitarismos se entendem, ou podem entender, apesar das diferenças que os enformam. Um programa onde se pretende recolher (da modernidade) o que se entende proveitoso (leia-se, a tecnologia sobretudo) repudiando ao mesmo tempo os valores democráticos e liberais (leia-se burgueses).

Assim, o fascismo é também uma estética, a da contemporaneidade tecnológica, do esplendor da velocidade, da glorificação da máquina e do perigo. A antítese do cenário da tranquilidade burguesa é o gosto pela novidade e pela exposição ao perigo. No fascismo não há lugar para a vida da monotonia. Ao espírito burguês o fascismo opõe um novo, como bem referiu Robert Brasillach. “O estilo fascista, que choca pela sua agressividade, exprime bem os novos valores éticos e estéticos. O estilo exprime um conteúdo: não se trata aqui de um simples meio de mobilização das massas, mas de uma nova escala de valores, de uma nova visão da cultura. Todos os futuristas têm o culto da energia, do dinamismo e do poder, da máquina e da velocidade, dos instintos e da intuição, do movimento, da vontade e da juventude; pregam um desprezo soberano pelo velho mundo burguês, cantam a necessidade e a beleza da violência” (Sternhell, 1995). E é tudo isto que atrai uma série de intelectuais que aí encontraram o lugar para a expressão da sua “revolta contra o mundo moderno”, na expressão de Julius Evola. Não contra todo o mundo moderno, mas contra uma boa parte dele.

Mussolini e o Fascismo

Professor primário, jornalista, revolucionário, exilado, auto-didacta, leitor de Nietzsche, tudo isso e mais foi Mussolini, nome maior de entre os associados ao fascismo. É ele que nos indica claramente quais são as suas linhas fundamentais. E em primeiro lugar surgem a acção e o pensamento. Sendo que naquela “está imanente uma doutrina” (Mussolini), surgida “de um dado sistema de forças históricas” (Mussolini), onde se encontra inserida e onde opera. Nasce, portanto, num espaço e num tempo históricos concretos onde se situam os homens e as sociedades, com um conteúdo “que a eleva a fórmula de verdade na história superior do pensamento” (Mussolini).

Além de acção e pensamento, o fascismo é também uma concepção espiritualista e uma ética: “concepção espiritualista (…) surgida (…) da reacção geral do século contra o positivismo do Ocidente fraco e materialista. Antipositivista, mas positiva: nem céptica, nem agnóstica, nem pessimista, nem passivamente optimista, como são em geral as doutrinas (todas negativas) que colocam o centro da vida fora do homem, o qual pode e deve, com a sua livre vontade criar o seu mundo” (Mussolini). E talvez por estas palavras se perceba melhor o facto de John Gray, no seu Sobre Humanos e Outros Animais, obra geralmente considerada como uma crítica ao humanismo ocidental, ter dedicado alguns parágrafos à análise do fenómeno fascista. Também não deixa de ser curiosa a semelhança (mais uma vez) entre o projecto mussoliniano e o marxista: quando lemos estas palavras de Mussolini vem imediatamente à memória o célebre dito de Marx segundo o qual o que os filósofos têm feito até à data é pensar o mundo, quando o necessário é mudá-lo. Ou seja, a acção e a criação humanas, aliadas à vontade de criar o mundo novo.

Uma ética porque esta concepção positiva da vida (…) abrange toda a realidade, bem como a actividade humana que a domina. Nenhuma acção escapa ao julgamento moral (…). Portanto, tal qual a concebe o fascista, a vida é séria, austera, religiosa, inteiramente concentrada num mundo sustentado pelas forças morais e responsáveis do espírito.” (Mussolini).

Acção, pensamento, concepção espiritualista e ética. Mas Mussolini não fica por aqui: “O Fascismo é uma concepção religiosa onde o homem é encarado sob o ponto de vista da sua relação com uma lei superior, com uma vontade objectiva que transcende o indivíduo particular, elevando-o a membro consciente de uma sociedade espiritual (…).

O fascismo é uma concepção histórica, segundo a qual o homem só é aquilo que é, em virtude do processo espiritual para que concorre no grupo familiar e social, na nação e na história, na qual todas as nações colabora. Daí o grande valor da tradição (…). Fora da história, o homem nada é. Por isso o Fascismo se ergue contra todas as abstracções individualistas de base materialista (…) e contra todas as utopias e inovações jacobinas” (Mussolini).

E assim percebemos melhor por que razão é o fascismo um totalitarismo. É Mussolini que o caracteriza desse modo, ao oferecer-lhe esta abrangência, este peso que visa todas as áreas da actividade humana na história. Presença mais que hegeliana, a história é o cenário de realização do estado, já não do simples indivíduo. O Fascismo é a vitória de Hegel contra Leibniz, do Idealismo sobre o racionalismo: “Anti-individualista, a concepção fascista é a favor do estado; e é pelo indivíduo, na medida em que este coincide com o estado, consciência e vontade universal do homem, na sua existência histórica (…). E é ainda Mussolini que, na entrada Fascismo para a Enciclopédia Italiana fala de “partido que governa totalitariamente uma nação”. Diferentemente dos totalitarismos nazi e comunista, o “fascismo (italiano) foi essencialmente um totalitarismo político, que viveu e conviveu com uma sociedade onde quase não tocou nas instituições tradicionais – Igreja, Exército, Capitalismo, Monarquia – apesar da força anímica do partido fascista e do seu enquadramento social e, como hoje podemos garantir a partir dos escritos de Emilio Gentile, uma vontade transformadora e transformista do homem através do Estado – isto é, do político (…). Quer Hannah Arendt, quer Raymond Aron tinham tido consciência desta natureza, escrevendo Aron: ‘O regime de Mussolini nunca foi totalitário: as universidades, os intelectuais não foram enquadrados, mesmo se a sua liberdade de expressão foi extinguida’ enquanto a autora de On Revolution, dizia que a baixa intensidade da repressão fascista, desqualificava este regime como totalitário” (Pinto, 1999).

O Estado fascista, forma mais alta e poderosa de personalidade, é força, mas força espiritual. Esta concentra em si todas as estruturas da vida moral e intelectual do homem” (Mussolini). Daí que nem indivíduos nem grupos possam ter a veleidade de se colocarem fora do estado. Não existem fora dele. Seriam lançados às “trevas exteriores”. Por isso (também), como já se viu, o fascismo faz-se contra o indivíduo do liberalismo e contra a luta de classes do marxismo. E contra a democracia, que vê no indivíduo apenas um número entre outros. Em síntese, “o Fascismo não é somente promulgador de leis e fundador de institutos, mas educador e promotor da vida espiritual. Pretende refazer, não as formas da vida humana, mas o homem, o carácter, a fé. Para alcançar este fim, necessita de disciplina e de autoridade que penetrem nos espíritos, dominando-os incontestavelmente. O seu emblema é, pois, o feixe dos Lictores, símbolo de unidade, de força e de justiça” (Mussolini). (4).

Fascismos

A ideologia fascista remete, necessariamente, para Itália. Mas, além da pátria fundadora, existiram outros movimentos similares um pouco por todo o continente europeu. Até que ponto eram, de facto, fascistas, é a questão que se coloca. Desde logo devemos perguntar em que medida é, ou não, o nacional-socialismo um fascismo. Aí, as opiniões são divergentes. “O relato de Sternhell (…) privilegia os primeiros intelectuais italianos, espanhóis e franceses, omitindo manifestamente os alemães. Mosse e outros defendem que ‘fascismo’ não é o mesmo que ‘nazismo’. Afirmam que os nazis racistas e anti-semitas se centravam mais no povo, o Volk, e menos no Estado, e que faltava aos nazis em geral um modelo de estado utópico. Era o movimento nazi, e não o Estado, que representava a nação, assim como era o Führer que a personificava. Em contraste, no Sul da Europa havia poucos fascistas que fossem anti-semitas ou racistas, e desenvolveram planos corporativistas e sindicalistas do Estado que ambicionavam. Enquanto o nazismo era völkisch, o fascismo era estatista (Mosse 1964, 1966, 1999; Bracher 1973: 605-9; e Nolte 1965, entre outros). E só o racismo nazi perpetrou o genocídio, acrescentam. Portanto, o nazismo não era fascismo.

Embora haja alguma verdade nisso, eu conto-me entre os que crêem que os nazis eram fascistas e que o fascismo pode ser tratado como um fenómeno mais geral. Hitler e Mussolini achavam que pertenciam ao mesmo movimento. ‘Fascismo’ era um termo italiano, que os nazis, como nacionalistas alemães que eram, não quiseram adoptar (…). Mas (…) os dois movimentos partilhavam valores essenciais semelhantes, tinham bases sociais semelhantes e desenvolveram movimentos semelhantes. O nacionalismo foi mais acentuado no nazismo, o estatismo no fascismo italiano. Mas eram variações sobre temas comuns” (Mann, 2011).

Não me parece, no entanto, que essas semelhanças sejam suficientes para equiparar as duas ideologias. As diferenças são várias e radicais, Desde logo, a óbvia e citada: o fascismo não tem a dimensão racial presente no nacional-socialismo, desconhecendo em larga medida a perseguição aos judeus (5) e sua exclusão social, bem como a prática de políticas genocidas, nem revela traços da herança gnóstica apresentada por este. E isso conduz-nos também às bases filosóficas dos dois sistemas. Há traços da heresia gnóstica no nacional-socialismo que não se encontram presentes no fascismo, no qual há mais do idealismo hegeliano, patente na quase divinização do Estado a que não será alheia a releitura feita em Itália (e França) da filosofia hegeliana. Mas apesar dessa divinização (ou talvez por ela), a violência exercida sobre os opositores é muito menor do que a vivida na Alemanha e separada por um abismo da sentida na União Soviética. Basta referir que, entre 1922 e 1940, os anos em que existiu fascismo sem guerra (se não contabilizarmos a invasão da Etiópia e da Albânia), foram proferidas nos tribunais italianos nove condenações à morte, a que acrescem outras dezassete no período da guerra. Evidentemente, os níveis de repressão de um Estado não se medem apenas por este parâmetro, mas em Itália a intromissão estatal foi menor do que nos dois outros totalitarismos da época. Filosoficamente, ainda, a influência exercida por Marx e Nietzsche em Mussolini e, deste modo, sobre o fascismo, não é de rejeitar. Com Hitler as coisas ter-se-ão passado de modo diferente, apesar da associação comum entre Nietzsche e o nacional-socialismo, que não sobrevive a uma análise mais profunda. O conhecimento que Hitler tem do pensador do eterno retorno é pouco mais que superficial, não sendo aquele um autor que se destaque na sua biblioteca, ao contrário do que sucede com Mussolini. A importância do marxismo na formulação fascista não passou despercebida a Maurice Merleau-Ponty, já em 1947: “Diz ele a propósito do fascismo que este é uma ‘mímica do bolchevismo’, à excepção daquilo que é verdadeiramente essencial, a ditadura do proletariado. Ora esta ‘teoria do proletariado’ é comprovada e exactamente aquilo que hoje em dia é quase universalmente considerado a parte ‘utópica’ do bolchevismo.” (Nolte, 1999). Descontado o exagero que é considerar o fascismo como mera mímica do bolchevismo o certo é que, como se sabe, Mussolini foi um leitor atento de Marx e o fascismo atraiu muitos socialistas que nunca deixaram de o ser, algo que também sucedeu no nacional-socialismo, mas em menor escala.

Não existe, também, no fascismo a hostilidade face ao catolicismo que o nacional-socialismo apresenta. O neo-paganismo apresentado por este (ou pelo menos por alguns dos seus principais mentores) não tem paralelo no fascismo italiano. A Alemanha há-de estar, relativamente às igrejas cristãs, mais próxima da constituição de uma igreja nacional do que alguma vez sucedeu em Itália. Derivação (ou talvez não) deste aspecto, o nacional-sosialismo apresenta familiaridades a elementos ocultistas impensados no fascismo, mas esse é um aspecto que releva, por vezes, mais do anedótico do que propriamente da investigação séria.

Quanto ao resto da Europa, não há, em lado algum, uma experiência paralela à italiana. Há movimentos ditatoriais um pouco por toda a Europa dos anos vinte e trinta, da Polónia do Marechal Pilsudski à Albânia do auto-proclamado rei Zog, passando pela Estado Novo, mas em nenhum país se pode dizer ter-se instalado um regime fascista. Movimentos próximos do fascismo que têm, de facto, influência nas políticas governativas ou chegam a participar de governos existem, sendo os mais notáveis os casos húngaro e romeno. No primeiro dos exemplos, à ditadura do almirante Horthy, há-de suceder em 1944 o efémero regime pró-nazi do Partido da Cruz de Flechas. E na Roménia o Movimento Legionário, apesar de ferozmente perseguido pela ditadura do rei Carol, há-de conseguir participar do governo durante um curto período, no consulado do marechal Antonescu. Mas mesmo estes dificilmente correspondem a movimentos fascistas, a não ser que se queira usar o termo num sentido alargado. No caso romeno, por exemplo, existe uma carga de religiosidade e misticismo que não cabem na versão italiana. E o projecto de Codreanu passava pela criação de um homem novo que era um homem de fé, comungando claramente dos princípios ortodoxos e cultivando um espírito de martírio que não está presente em Itália – e mesmo em outros mais próximos. A dimensão religiosa repercute-se nas palavras de Codreanu: “aquele que luta por Deus e pelo seu povo não poderá ser derrotado”. A fé em Deus é, de resto, o primeiro ponto do credo legionário.

Quanto ao cenário de fora da Europa, encontramos um retrato do mesmo em Renzo de Felice, o qual escreve que “… se é correcto falar do fascismo como um dos grandes fenómenos históricos do nosso século, é necessário precisar, antes de mais, que o fascismo não pode ser transposto para fora da Europa e do período entre as duas guerras mundiais. As suas raízes são de facto tipicamente europeias e mergulham no processo de transformação da sociedade europeia determinado pela Primeira Guerra Mundial e pela crise de passagem – moral e material – para uma sociedade de massa baseada em novas formas de integração estatal, política e social que se verificou um pouco por todo o continente, mas sobretudo nos países que enfrentaram essa transformação em condições particulares de atraso, fraqueza e anomalias económicas e políticas” (De Felice, 1978).

Um Internacionalismo Fascista?

Quando falamos em internacionalismo somos remetidos para o imaginário comunista, das Brigadas Internacionais em Espanha ao confronto entre Trotski e a sua ideia de uma revolução global vs. Estaline e o seu comunismo num só país. No caso fascista, se não existiu propriamente um komintern que se encarregasse da ortodoxia a nível europeu, não deixou de existir também um internacionalismo (ou será mais correcto chamá-lo de europeísmo?) igualmente presente na Guerra Civil Espanhola com a presença no terreno de fascistas italianos, portugueses, legionários romenos e outros. Este quadro desenhou-se, essencialmente, a partir do início da década de trinta, depois de consolidado o regime a nível interno. “Por alturas do 10º aniversário da Marcha sobre Roma em 1932 (…) podemos observar a rápida evolução da propaganda do regime em direcção à possibilidade de uma difusão externa do fascismo. Esta projecção externa será apoiada na vontade do próprio Mussolini” (Nordling, 2013). Tal deveu-se a uma “crescente simpatia do Duce pelos grupos mais jovens do fascismo que reclamavam uma difusão internacional do fascismo como parte daquela missão redentora que o mesmo continha (…). Além do mais, podemos juntar a concepção moderna e internacionalista do pensamento mussoliniano que, não esqueçamos, era originário das fileiras do sindicalismo revolucionário tendo bebido das fontes do internacionalismo socialista. Ele não entendia esta revolução como circunscrita apenas ao povo italiano” (Nordling, 2013). Esta ideia, ou projecto de internacionalização ideológica tem início em finais dos anos 1920 e “ é nos anos de 1930 que a ideia de Fascismo Universal é assumida pelo próprio Mussolini, declarando em Outubro de 1930 que o Fascismo “como uma ideia, uma doutrina e uma realização, é universal’. Com apoio explícito do Duce, em breve a corrente do Fascismo Universal começa a ser moldada institucionalmente graças à criação de centros de estudo (…) ou congressos internacionais (…). Várias organizações e instituições públicas ou semi-públicas são criadas ou potenciadas para divulgarem a propaganda fascista no estrangeiro” (Nordling, 2013) (6).

E em Portugal, houve Fascismo?

Não. Claramente, não. Em Portugal houve fascistas, dos quais o mais notável terá sido Homem Cristo Filho. Ou Castro Osório (7). E existiram simpatizantes (8). Mas em Portugal houve elementos do Estado Novo que foram decalcados do fascismo italiano, dirão alguns. As organizações de juventude e paramilitares, a polícia política, a censura, o corporativismo… Certo. Mas boa parte deles existiram igualmente nos regimes ditos comunistas. E isso não faz do Estado Novo um regime idêntico. O que foi, então, o Estado Novo? Um regime ditatorial, como muitos dos que evoluíram na Europa dos anos trinta do século passado, mas claramente mais próximo de uma Áustria do chanceler Dolfuss (assassinado pelos nazis austríacos) do que de uma Itália mussoliniana, em relação à qual o próprio Oliveira Salazar guardava as devidas distâncias pese embora o retrato de Mussolini na secretária. E cuja legitimidade passou também, depois da Segunda Guerra Mundial, por eliminar ou esvaziar instituições que remetessem para um imaginário caído em desgraça aos olhos da nova configuração geopolítica da Europa Ocidental. Deste modo, é facilmente compreensível a crítica de Rolão Preto, o mais conhecido de entre os fascistas portugueses, quando considerava o Anschluss “como consequência inevitável de um ‘pseudo-fascismo católico’ que se limitou a copiar do fascismo a ‘parte coerciva, esmagadora, paralisante’ e criou burocráticos ‘sucedâneos’ de ideias, organizações e instituições deste, construindo um regime chefiado por alguém que, ‘por temperamento, educação e espírito exclusivamente católico’, conduziu a Áustria à tragédia” (Pinto, 1994).

A que se deve, então, essa insistência por parte de muitos em rotular de fascista o regime português do Estado Novo? A razão principal, parece-me, reside na apropriação que os movimentos de esquerda, em particular comunistas, fizeram da vitória aliada na Segunda Guerra Mundial. Assim, esquecendo convenientemente o pacto germano-soviético de 1939 (que, além do silêncio cúmplice dos movimentos comunistas da Europa Ocidental em relação à agressão dupla face à Polónia, implicou nova cumplicidade (pelo menos por omissão) relativamente aos avanços germânicos em França durante 1940), e as familiaridades entre nacional-socialistas e comunistas, estes haveriam de tirar o máximo de dividendos da vitória da União Soviética na guerra adquirindo uma legitimidade que, de outra forma, dificilmente teriam tido. E foi essa legitimidade que os configurou como combatentes pela liberdade e não como potenciais construtores de um novo regime, ditatorial como o que enfrentavam, apenas de cariz ideológico oposto. No caso português, com a oposição ao regime do Estado Novo marcada pelo PCP, pelo menos até à década de setenta, altura em que emergem outras formações fruto da cisão sino-soviética, o rótulo de fascista colocado ao regime configurava a legitimidade do combate ao mesmo, agora visto como anacronismo a extirpar face à nova realidade geopolítica. Depois da revolução de Abril de 1974, por maioria de razões, interessava manter a ideia. Que não se desmoronou, pois estava agora enraizada nos meios letrados, fruto de uma estratégia gramsciana de tomada do poder levada a cabo durante décadas, sobretudo a partir dos anos cinquenta. Esta caracterização como fascista de um regime que não o foi talvez sirva, igualmente, como tentativa de obnubilar o muito que havia de socialismo no ideário mussoliniano, criando uma associação entre fascismo e oligarquia (e mais uns quantos elementos, da Igreja aos industriais passando pelos banqueiros) que, como vimos, foi desde o início questionada no processo de tomada do poder e subsequente consolidação do mesmo vivido em Itália. Essa é a posição defendida igualmente por Bruno Oliveira Santos que, não sendo historiador, escreve estas linhas acerca do assunto: “É preciso explicar o azedume de certa esquerda pela figura do Duce.(…) sobretudo porque o programa do primeiro fascismo contém inúmeras medidas que os esquerdistas incorporaram depois no seu património, chamando-lhes suas de raiz.

Quando, em Março de 1919, numa conferência presidida pelo romântico Ferruccio Vecchi, se apresentou o programa dos ‘Fasci di Combatimento’, a assistência escandeceu-se da audácia das medidas: sufrágio universal; voto para as mulheres; jornada de trabalho de 8 horas; salário mínimo; instituição do ‘referendo’ e de esquemas básicos de ‘segurança social’.

Isto deu-se quase 20 anos antes de a Frente Popular (…) introduzir alguns (…) destes direitos em França. Aqui reside, pois, a causa da azia. Numa época em que o L’Humanité, de Léon Blum e Jean Jaurés, andava ainda entretido com historietas sobre a revolução russa e o magnífico programa bolchevique, os fascistas italianos (…) outorgavam o mais alargado conjunto de direitos e regalias à…classe operária” (Santos, 2006).

Na mesma linha de pensamento, escreve Jaime Nogueira Pinto que “ a esquerda triunfante de 1974-1975 criou a sua legitimidade, em nome do resistencialismo anti-fascista; e não tinha muito mais hipóteses de justificação (…). Assim em relação a um fascismo que nunca existiu, coloca-se o paradoxo da trave mestra do actual regime ser o anti-fascismo ideológico. Esta categoria é essencial para compreender a História política e a problemática da legitimidade do regime português: como nunca na chamada ‘direita’ partidária, isto é, na não esquerda, tal questão foi substancialmente posta e se assistiu a exercícios por parte de personalidades e menos personalidades de apresentarem e manifestarem os seus créditos antifascistas, os comunistas e a extrema-esquerda guardaram uma importância muito maior, por um quarto de século, da que realmente tiveram, ou deviam ter e têm num país que contribuíram significativamente para empobrecer, num tempo em que tudo aquilo em que basearam a sua credibilidade está morto e enterrado.

E sito porque, contra toda a lógica e toda a racionalidade, a técnica da amálgama, bem servida pela demagogia de uns poucos e pela ignorância ciclópica de quase todos alimentada mediaticamente funcionou: a amálgama é Holocausto=Nazismo=Fascismo=Salazarismo=Nacionalismo=Direita ou lido ao contrário Direita=Nacionalismo, etc., etc.” (Pinto, 1999).

Ao lado dos que defendem não ter sido o Estado Novo um exemplo de fascismo outros há que sustentam o contrário com base em premissas bastante questionáveis, num debate que prossegue e que se pode, em boa parte, resumir assim: “ Na tradição política ibero-americana era frequente, no entanto, esta identificação do salazarismo com o fascismo, sobretudo nas correntes de oposição às ditaduras, começando com Unamuno que, no entanto, já apontava alguma singularidade ao salazarismo ao chamar-lhe ‘fascismo catedrático’.

Na historiografia portuguesa começou-se por tentar conciliar esta tradição política com o rigor analítico, e um autor pioneiro como Manuel de Lucena veio propor para o salazarismo a fórmula de fascismo sem movimento fascista. Fernando Rosas avançou também com a ideia de ter-se verificado um processo intenso de fascização entre 1936-1945, depois atenuado.

Entre as obras mais recentes, há quem tenha argumentado, como Manuel Loff, que este período de fascização até 1945 foi o mais revelador da verdadeira natureza do regime que, portanto, seria sempre realmente fascista. Já Filipe Ribeiro de Menezes continua a defender, na sua recente biografia política de Salazar, a linha antes sustentada por, por exemplo, Manuel Braga da Cruz, de que nem toda a ditadura de direita é fascismo e de que, como defendeu António Costa Pinto, houve mesmo fascismo em Portugal, mas foi o do Movimento Nacional-Sindicalista que Salazar derrotou” (Reis, 2015).

Este movimento encontra raízes no Integralismo Lusitano e em outros movimentos que antecederam a revolução do 28 de Maio, da Cruzada Nuno Álvares Pereira aos sidonistas que contribuíram para a mitificação da figura do presidente-rei, na conhecida expressão de Fernando Pessoa. Aliás, muito mais do que Salazar, é Sidónio Pais que no imaginário político português mais se aproxima da figura do líder salvífico ao estilo fascista posteriormente reproduzido em Itália. Assim, temos que “As características mais salientes da emergência do fascismo na sociedade portuguesa do pós-guerra são, por um lado, a precocidade com que o exemplo do seu primeiro paradigma externo (o fascismo italiano) foi difundido e, por outro, a debilidade e a fragmentação da sua expressão partidária.

O primeiro referencial político do fascismo em Portugal constituiu-se em torno da breve ditadura de Sidónio Pais (…). O sidonismo constituiu no pós-guerra uma referência para o fascismo português, sobretudo para os jovens oficiais, intelectuais e estudantes republicanos de direita, que criaram diversos partidos onde o exemplo do partido de Mussolini era crescentemente referido (…). Muitos destes grupos não podem sequer ser rigorosamente caracterizados como fascistas. O conceito de direita radical é mais apropriado para definir a sua natureza, ainda que a percepção do fascismo, agora entendido como o partido de Mussolini, e a mescla de elementos ideológicos que ele unificou estivessem presentes” (Pinto, 1994). São estes grupos, dos quais os mais notáveis foram, além da referida Cruzada Nuno Álvares Pereira o Centro Sidónio Pais, o Partido Nacional Republicano, a Liga 28 de Maio e o Nacionalismo Lusitano. Este fervilhar ideológico culminará posteriormente na criação do Movimento Nacional-Sindicalista que assume um carácter marcadamente fascista, com o culto do chefe e a doutrina corporativista, além da aproximação ideológica a movimentos similares que despontavam na Europa. Por momentos, terá existido em alguns a ilusão de que Rolão Preto poderá ser alternativa a Salazar. São os anos de 1933 e 1934, em que os NS vivem os seus dias de glória, conseguindo muitas adesões um pouco por todo o país, mobilizando 3000 militantes nas comemorações do 28 de Maio em Braga e vendo o seu chefe ser recebido pelo presidente da república, o Marechal Carmona, que assegurará terem lugar na revolução todos os patriotas. Durará pouco esta ilusão, pois o Movimento acabará extinto e Rolão Preto exilado. Os NS integrar-se-ão no regime, uns, enquanto outros optarão pela indiferença ou a oposição, à semelhança do que sucederá também com o chefe, que abandonará os ideias dos anos trinta mas não o combate contra o Estado Novo. Terminava assim, sem brilhantismo, aquilo que demais parecido existiu entre nós a um movimento fascista de massas.

O que resta

Na ressaca da Segunda Guerra Mundial o fascismo pagou a sua associação ao nacional-socialismo e, ao contrário do que sucedeu com o terceiro elemento da tríade totalitarista viu-se demonizado e invectivado. Não deixa de ser curioso pensar no que sucederia caso Mussolini não tivesse optado pela aliança com Hitler e a Itália tivesse prosseguido com a neutralidade inicial. Porque mesmo o ataque italiano à Etiópia em 1935 foi apresentado por alguns sectores fascistas como fazendo parte da luta entre trabalhadores e classes dominantes, aproveitando a circunstância do país africano apresentar ainda diversos traços de feudalismo, dos quais o menor não seria um já anacrónico, à data, imperador.

Não foi assim, e o fascismo viu-se derrotado e remetido para a lista de vencidos. Em Itália, fascistas houve que seguiram para o lado (não tão) oposto, o do PCI. Outros haveriam de alimentar o Movimento Social Italiano, herdeiro mais ou menos directo do partido fascista. Fora de Itália a chama manteve-se viva, sobretudo, em Espanha, lugar de refúgio de fascistas e associados, como Léon Degrelle (líder do partido rexista belga) ou Horia Sima (sucessor de Corneliu Zelea Codreanu no comando do Movimento Legionário Romeno). Além, claro está, dos falangistas espanhóis. Um pouco por toda a Europa Ocidental, e depois de 1989 na Europa de Leste, foram despontando partidos de cariz neofascista -embora tal rótulo possa ser discutível-, que geralmente não alcançaram grande expressão eleitoral e permaneceram vivos sobretudo no imaginário jornalístico. Assim, “os partidos fascistas, com outros nomes e simbologias que evitam as proibições legais estabelecidas depois da guerra na Europa pós-fascista, reaparecem à medida que o cenário político interno se reabre. Paradigmático é o caso do Movimento Sociale Italiano que se estabelece em dezembro de 1946 – ou reestabelece sua presença pública, em termos de neofascismo no cenário político italiano redemocratizado à força e desde fora. Ao longo do pós-guerra vemos reaparecer os chamados movimentos e partidos neofascistas e neonazistas por toda a Europa (onde a abertura política o permite)” (Sznajder, 2010). De facto, tais partidos e movimentos vão e forma reaparecendo, mas poucas ou nenhumas vezes conseguindo expressão significativa.

Hoje, setenta anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o fascismo é cada vez mais uma recordação e um epíteto conveniente para lançar contra adversários políticos, aproveitando a referida demonização da ideologia e o desconhecimento do que foi, realmente, por parte da maior parte dos cidadãos. Em Itália, o MSI transformou-se em partido político respeitável sob a acção de Gianfranco Fini, mudando de nome para Aliança Nacional e integrando o governo, e o fascismo ficou na posse de grupos mais ou menos marginais e de alguns elementos de claques futebolísticas. No resto da Europa, a situação não é diferente. Quanto a Portugal, mantém-se uma originalidade: a da constituição proibir a existência de partidos fascistas embora o regime anterior à revolução de Abril nunca o tenha sido. Quanto a fascistas, os poucos que se mantinham fiéis à doutrina vão desaparecendo. António José de Brito morre em 2013. Goulart Nogueira em 2015, de forma mais ou menos anónima. Quanto ao estudo dos fascistas e do fascismo, nova originalidade: se o Estado Novo tem sido objecto de inúmeros estudos que abrangem também os movimentos fascistas existentes à data, a realidade posterior à revolução de Abril permanece um campo de estudo por desbravar, tendo sido necessário aguardar pelo trabalho do investigador italiano Riccardo Marchi para que essa tarefa pudesse começar a ser levada a cabo de forma sistemática. Aqui, a regra tem sido sobretudo a de não falar de modo a que não se dê pela existência da coisa. Globalmente, portanto, e ao contrário do que sugere Michael Mann, não me parece que exista qualquer risco de retorno do fascismo. Até porque, esse hipotético regresso, se feito sob outras formas já não seria daquele mas de algo diferente. Dizer que o fascismo pode regressar sob formas diferentes é não dizer nada, em rigor. Porque é o mesmo que dizer que o feudalismo pode regressar sob forma diferente ou o comunismo ou outra coisa qualquer. Mas aquilo que regressa sob nova forma já não é o original, mas sim o diferente. O fascismo, hoje, existe sobretudo para alimentar medos e legitimar discursos, os dos antifascistas que deles extraem privilégios, sentido ou algo de completamente diferente. No mais, pertence à História. Como o feudalismo, o Iluminismo ou outro qualquer ismo que por ela tenha passado.

Notas:

  1. Homem Cristo Filho (1892-1928), anarquista, monárquico, fascista, morre quando se dirige a Roma, com o filho Guy, a fim de se encontrar com Mussolini. Nomeado Alto Comissário para o Congresso das Nações do Ocidente, que haveria de ter lugar em Roma, em Abril de 1929 e seria uma espécie de lançamento de uma Internacional Fascista que não chegará a ver a luz do dia. Sobre este assunto ver Miguel Castelo-Branco, Homem Cristo Filho – do anarquismo ao fascismo, Lisboa, Nova Arrancada, 2001.
  2. Nesse sentido, escreve Jaime Nogueira Pinto: “Mas como e porque é que o fascismo ‘de esquerda’, o fascismo fundacional de San Sepolcro e dos manifestos radicais de sindicalistas e futuristas, vai mudar tanto? Como é que os revolucionários, que abominavam os ‘socialistas oficialistas’ e as ‘forcas da reacção’ – do Vaticano à Monarquia, vão acabar convertidos à aclamação das forças tradicionais? Saudados, na Marcha sobre Roma, foram acolhidos com entusiasmo e alívio pelas classes médias, recebidos com simpatia pelo rei, que chamou Mussolini a formar governo, e até confirmados pelo papa Pio XI, que se referirá ao duce como ‘homem da Providência’. A mudança não tem nada, ou quase nada, de misterioso. Corresponde à evolução natural de um movimento político activista, composto por diversas famílias ideológicas, e comandado por homens de acção. O seu chefe, Benito Mussolini, é um autodidacta, uma espécie de condottiere com o sentido realista do poder, com convicções mas sem uma ideologia que as domestique e as classifique rigorosamente. Agressivo mas capaz de negociar, directo mas com reserva táctica, Mussolini tem um profundo sentido de estratégia e de manobra e é um homem muito deste tempo de tábua rasa em relação ao passado e de indefinição quanto ao futuro” , Jaime Nogeuira Pinto, Ideologia e Razão de Estado – uma história do poder, Porto, Civilização, 2013, p.375.
  3. Miguel Baptista Pereira enuncia seis grandes categorias da modernidade. São elas a secularização, a crítica, o progresso, a revolução, a emancipação e o desenvolvimento/evolução. Miguel Baptista Pereira, Modernidade e Tempo – para uma leitura do discurso moderno, Coimbra, Minerva, 1990.
  4. Todas as citações de Mussolini são extraídas de António José de Brito, Para a Compreensão do Fascismo, Lisboa, Nova Arrancada, 1999.
  5. Uma prova disso é o facto de, em 1930, a percentagem de elementos judeus no Partido Fascista ser de 10%, claramente superior à percentagem total de judeus na população italiana (Pascal Ory, Do fascismo, Mem Martins, Editorial Inquérito, 2007, p.26.
  6. Exemplos dessa atracção pelo fascismo e do sucesso deste na sua “cruzada” internacionalistas foram os casos de Ezra Pound, que entre 7 de Dezembro de 1941 e 24 de Julho de 1943, vai proferir uma série de alocuções na Rádio Roma que depois da guerra lhe custarão treze anos de internamento forçado numa instituição psiquiátrica. Ou do português Homem Cristo Filho, já citado.
  7. Sobre Castro Osório pode ler-se Eduardo Cintra Torres, O Chefe Fascista (queremos um chefe: multidão e carisma em João de Castro Osório -1919-1924) in Grandes Chefes da História de Portugal, Lisboa, Texto Editora, 2013.
  8. Cabe aqui uma palavra para situar Fernando Pessoa. Recentemente têm saído alguns trabalhos que procuram mostrar um Fernando Pessoa crítico de Salazar e do Estado Novo. No mais recente, da responsabilidade de José Barreto ( Fernando Pessoa, sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar, Lisboa, Tinta da China, 2015), questiona-se a tese de Alfredo Margarido, segundo a qual as objecções de Pessoa seriam derivadas de um radicalismo que não veria no regime salazarista e que encontraria, sim, em Itália. A solução não parece ser assim tão simples, pois se é verdade que o poeta se manifestou em diversos textos crítico de Salazar e do seu regime, a hipótese de que o tenha feito por simpatias para com a revolução italiana e o seu líder não pode ser descartada sem mais. Até porque o último acto público em que Fernando Pessoa participou, antes do seu internamento no Hospital de São Luís dos franceses, terá sido um jantar de nacionais-sindicalistas. Se é verdade que uma simples presença num acontecimento deste nível não vincula automaticamente os participantes com as ideias nele expressas, também é certo que uma tal participação não se furta a interpretações que sustentem simpatia para com as ditas. Além disso, Fernando Pessoa apresenta um percurso coerente de compreensão para com soluções mais ou menos providenciais na política portuguesa. Se a mais conhecida encontra expressão no poema em memória do “presidente-rei Sidónio Pais”, existe ainda o apoio à ditadura (ou pseudo-ditadura) de Pimenta de Castro, o texto de apoio à ditadura militar e outros. Sobre este assunto ver Bruno Oliveira Santos, Nova Frente, Porto, Antília Editora, 2006, pp. 95-96.
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References:

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  • Pinto, Jaime Nogueira, Ideologia e Razão de Estado – uma história do poder, Porto, Civilização, 2013.
  • Pinto, Jaime Nogueira, Prefácio in Alain de Benoist, Comunismo e Nazismo – 25 reflexões sobre o totalitarismo no século XX (1917-1989), Lisboa, Hugin, 1999.
  • Reis, Bruno C., A Vida Política in História Contemporânea de Portugal, volume 4, Lisboa, Objectiva, 2015.
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