Introdução
Em bom rigor, a Sociedade Civil constitui um núcleo defensivo contra o poder de Estado excessivo ou face ao individualismo atomizado, que bem considerados, são causas cujo culminar é o autoritarismo. As raízes históricas do termo derivam do conceito jurídico romano ius civile, mas o uso contemporâneo, que descreve relações contractuais, a ascensão da opinião pública, o governo representativo, as liberdades civis, a pluralidade e a civilidade, apareceram primeiramente na filosofia política produzida durante os séculos XVII e XVIII.
Por exemplo, na obra Leviathan, de Thomas Hobbes, são delineados dois ramos da sociedade, a política e a civil, cujo liame é o “contracto social” entre os sujeitos e os indivíduos. A atribuição da soberania ao Estado protege a sociedade de uma guerra entre todos. Embora neste livro o sistema político fosse a parte dominante, o político e o civil entrelaçavam-se num sistema sustentável, no qual a actividade privada, ainda que governada por leis soberanas, se encontrava limitada somente pela consciência e as regras das associações cívicas.
Posteriormente, e disputando o pessimismo de Hobbes quanto à natureza humana, John Locke enfatizou o estatuto da sociedade civil enquanto espaço de associação, contracto, e regulada pelo Direito. Para Locke, quando os sujeitos davam início a uma parceria benéfica, contraíam a autoridade do Estado para se protegerem, ainda que impondo condições; e o governo político também estava sujeito ao Direito, derivado dos direitos naturais inerentes à sociedade civil.
Em teorias subsequentes, a sociedade civil tornou-se numa esfera autónoma separada e possivelmente oposta ao Estado. Baseada em redes aristocráticas, e na dicotomia emergente entre o público e o privado, os protótipos físicos da associação livre e do debate eram frequentemente os cafés, nos quais a actividade pública era um exercício deliberado por círculos sociais exclusivos.
As teorias da sociedade civil preocupavam-se principalmente na defesa da ideia de um espaço público para o debate e para a associação privada, e isto num período em que os princípios liberais não eram amplamente partilhados. Para Adam Ferguson, o desenvolvimento da sociedade civil reflectia o progresso da humanidade, desde as sociedades simples alicerçadas no clã militarístico, até às sociedades complexas, isto é, comerciais.
Contudo, este processo de diferenciação social e perda da comunidade ameaçou com o crescente conflito, debilitando assim a fábrica social. Mas a sociedade civil tem o potencial de estabelecer uma nova ordem ao requerer a difusão do poder, do Estado de Direito, e sentimentos liberais, que assim dão garantias aos indivíduos. Uma importante consequência desta ideia é que a sociedade civil não remete meramente para qualquer espécie de relação social informal ou privada, que existe em todas as sociedades, e sim para relações moralmente guiadas que tornam possíveis trocas sociais anónimas, desse modo facilitando a integração social.
A teoria clássica da sociedade civil formulou o conceito a par dos valores associados aos mercados liberais e envolvimento comunitário. Encontra-se a génese deste raciocínio em moralistas como Tocqueville, Durkheim, e escritores contemporâneos como Robert Putnam. Grupos activos, informais e voluntários, tornam mais promissora a realidade de uma democracia estável, protegendo esse congregado de uma maior incursão do Estado. Como contrapartida, a ausência de uma sociedade civil explica e reforça o autoritarismo.
Com Hegel, expõe-se uma tensão implícita, caracterizada pelo conflito entre a sociedade comercial e as exigências da paz social: uma vez que para Hegel a sociedade civil se encontrava repartida entre a vida ética e o autointeresse egoístico. Por outras palavras, o espírito objectivo alcança o autoconhecimento através da diferenciação em esferas discretas, que compõem a totalidade da família, sociedade civil, e do Estado.
A visão de Hegel sobre a sociedade civil antecipou a crítica de Marx sobre a polarização das classes, que seria ultrapassada caso o Estado constitucional sintetizasse a vida ética com o domínio público da sociedade civil. Porém, Marx dispensou a sociedade civil e fê-la equivaler simplesmente à sociedade burguesa, uma arena de conflitos, opressão de classe, e emancipação ilusória. Mais tarde, Gramsci, tentando combater o reducionismo económico, reintroduziria o conceito na teoria marxista, definindo a sociedade civil como uma esfera de combate cultural contra a hegemonia burguesa.
References:
Ray, L. J. (2004) Civil Society and the Public Sphere. In: Nash, K. & Scott, A. (Eds.), The Blackwell Companion to Political Sociology. Blackwell, Oxford.