Problematização
Embora as definições correntes caracterizem a guerra como um conflito duradouro e a grande escala entre grupos políticos (estados ou estados-nações), encontrar uma definição incontestável de guerra é praticamente uma tarefa impossível: a dificuldade reside não tanto na vaguidade de termos como “conflito a grande escala” (quantas cadáveres são necessários para elevar um conflito a uma guerra?), ou “conflito duradouro” (testemunhámos guerras históricas que duraram décadas; contudo, poderá um conflito que dure meras horas ser classificado como guerra?).
O problema de fundo com tais definições é o elo íntimo entre guerra e estado, uma vez que esta ligação é incómoda para os cientistas sociais que – tal como os historiadores e os antropólogos – tem que interpretar conflitos em áreas ou períodos históricos onde a entidade estatal se encontra ausente. Igualmente, é uma batalha de semelhante cariz para os sociólogos e cientistas políticos que lidam com conflitos contemporâneos em regiões em que os estados outrora existentes desapareceram enquanto unidades políticas soberanas, e onde uma variedade de grupos usou o seu potencial para a violência de forma inumana. Posto isto, deverá esta manifestação de violência ser considerada uma “guerra”? Ou é outro tipo de conflito? Colocadas estas questões preliminares, o problema da definição de guerra surge imediatamente.
Origens
Conquanto que as análises referentes à guerra (e paz) são provavelmente tão antigas quanto a historiografia, a investigação sistemática sobre este tópico não começou antes do Iluminismo europeu. A pesquisa, no entanto, concentrou-se muito mais nas condições essenciais à paz e não tanto nas realidades da guerra: claramente com intenções normativas, filósofos como Thomas Hobbes até Jean Jacques Rousseau e Immanuel Kant, refletiram sobre as possibilidades de prevenção da guerra.
Somente após este período é que ganhou corpo uma primeira análise da guerra como processo dinâmico, o que foi um feito atribuído ao famoso tratado de Carl von Clausewitz intitulado Da Guerra (On War, 1832). Nesta obra, Clausewitz interpretou a guerra como o exercício da política por outros meios, apesar de nunca ter considerado a guerra como um processo planeado e executado exclusivamente por atores racionais. Pelo contrário, Clausewitz concebeu a guerra com recurso à sua “fórmula trinitária”, argumentado que a guerra deveria ser compreendida como a interseção de ações de governos, populações e militares; ações racionalmente motivadas, mas também despoletadas pelo ódio, hostilidade e manobras calculistas.
A data de publicação do tratado de Clausewitz coincidiu ironicamente com o início da sociologia, uma vez que por volta deste período, Auguste Comte escreveu a obra Cours de la philosophie positive: “ironicamente”, uma vez que Comte parecia pertencer a um mundo totalmente diferente, considerando que o pensamento de Clausewitz foi moldado pela experiência revolucionária e das guerras napoleónicas, ao passo que os escritos de Comte foram impregnados pela crença liberal no progresso contínuo rumo a uma sociedade pacífica e racional.
Foi Comte que argumentou que a história podia ser dividida em três períodos: uma era teológica, outra metafísica, e a última seria científica, dominada pelo espírito científico que erradicaria todo o mal e ambições militares. Posto isto, Comte formulou a tese que se tornou numa premissa fundamental para a maior parte dos sociólogos da segunda metade do século XIX e sociólogos do século XX: precisamente, a tese liberal sobre a incompatibilidade entre a guerra e a sociedade industrial. Segundo esta tese, a guerra é uma manifestação arcaica e uma relíquia em vias de extinção, pelo que não seria necessário analisar o fenómeno ao pormenor. Este ponto foi ironicamente partilhado por socialistas e Marxistas, considerando que estes também esperaram a conclusão das guerras, mas no quadro da etapa histórica derradeira que seria o socialismo. Na mesma linha, teoristas liberais e socialistas do imperialismo como Hobson e Schumpeter, e Lenine e Rosa Luxemburgo, concentraram-se muito mais nas causas políticas e económicas das guerras imperiais, e não tanto na guerra em si e nas consequências produzidas.
Notamos assim, que na fase inicial da história da sociologia, dificilmente encontraremos sociólogos que analisem seria e sistematicamente a guerra – precisamente pelo pressuposto liberal (e socialista). É verdade que na obra maciça de Max Weber podemos encontrar pistas interessantes sobre as consequências da guerra para o desenvolvimento social. Mas também é verdade que grande parte dos pais fundadores da sociologia mantiveram uma distância quanto ao tema.
Somente durante a 1ºGuerra Mundial é que alguns sociólogos produziram literatura sociológica sobre o assunto, particularmente Émile Durkheim, Georg Simmel e George Herbert Mead. Contudo, as peças publicadas não se encontravam no coração das ideias que tornaram estes vultos em figuras tutelares na sociologia. Curiosamente, a negligência sociológica perante a problemática da guerra atravessou as duas grandes guerras que assolaram a Europa no século XX.
Emergência da Sociologia da Guerra
Somente com o crescimento da sociologia histórica em finais da década de 70 do século XX, e com o advento de uma nova ordem mundial após o colapso da União Soviética, é que a guerra, especialmente as suas consequências, conheceram a teorização profunda e um lugar importante na investigação sociológica. O interesse começa com a obra States and Social Revolutions de Theda Skocpol (1979), que lança o debate sobre a contribuição das disputas bélicas na formação da modernidade europeia. Skocpol argumentou que as revoluções francesa e russa só poderiam ser compreendidas a partir de um contexto internacional, particularmente as crises administrativas estatais, devidas ao enfraquecimento resultante de guerras prolongadas. Outros académicos defenderam que o estado moderno e o monopólio sobre a violência foram o resultado de violentos conflitos entre estados: como produto destes conflitos é que se construíram as grandes burocracias europeias, com o propósito de extraírem recursos da sociedade civil de modo a financiarem grandes armadas. Mesmo a expansão da democracia e do estado social parece historicamente ligada com a guerra, uma vez que as populações sofredoras exigiram o sufrágio e os direitos sociais. Por último, mas não menos importante, a guerra está associada também à repressão interna, uma vez que a militarização das sociedades, teve por vezes como resultado a limpeza étnica ou mesmo o genocídio. Ilustrado por esta nova tendência na investigação sociológica, é também o facto da guerra não ser um fenómeno homogéneo, uma vez que existem diferentes modos de guerra com diferentes repercussões. Atendendo ao contexto do século XIX e XX, encontramos quatro tipologias de guerra: (1) guerras entre estados vizinhos ou nações competidoras; (2) guerras coloniais; (3) guerras civis; (4) guerras de emancipação nacional contra as potências coloniais europeias.
References:
Clausewitz, C. von (1976 [1832]) On War. Ed. And Trans. M. Howard & P. Paret. Princeton University Press, Princeton.
Joas, H. (2003) War and Modernity. Blackwell, Cambridge, MA.