A expressão vontade potência é utilizada na filosofia de Friedrich Nietzsche para representar a dinâmica das ações.
Na língua portuguesa, o termo ‘Macht’ pode ser traduzido por potência ou poder. Para evitar uma ambiguidade traduzimos aqui Macht por potência que, em português, tem um sentido mais abrangente (há potência no homem, nos animais e até no âmbito inorgânico), já que a noção de poder traz uma referência mais especificamente à esfera humana: poder militar, econômico, estatal etc.
Segundo Nietzsche, quem responde pela dinâmica dos atos humanos e dos eventos do mundo não é o sujeito, nem as coisas com suas causas exatas, mas sim a Vontade de potência. Elimina-se a ficção da identidade, e volta-se para o devir. Na visão nietzscheana, a realidade não é impulsionada pela vontade, mas sim pela Vontade de Potência, identificada por um mar de forças em constante contradição, em permanente confronto, perfilando indistintamente todas as configurações de forças do mundo, seja na pedra, no árvore ou no homem. Não há exceção no circuito dos acontecimentos, pois tudo está submetido às inúmeras configurações de forças que lutam permanentemente para impor o seu interesse, que desenham sem cessar o caleidoscópio da realidade. Cada momento apresenta um novo encontro de impulsos, cada instante traz o diferente: uma nova constelação de forças se faz e logo se desfaz. A vontade de potência exprime uma unidade-plural de forças que configuram o jogo do mundo; é unitário porque não há vários tipos de acontecimentos (humanos e naturais, causas finais e causas eficientes, sujeitos e coisas), pois tudo segue a mesma dinâmica do devir e plural porque as forças são inúmeras e em contínua mudança.
O mundo como vontade de potência é jogo dessas forças, que ao mesmo tempo é uma luta entre elas. Por isso, só podemos afirmar a “causalidade da vontade de potência”. A noção de causalidade aqui, trata de relações entre entidades – sejam internas ou externas – que se configuram numa luta entre as forças. A causalidade da vontade de potência surge da luta fugaz entre vontade-força que, a cada momento, adquire (mais ou menos) potência. Cada instante revela uma determinada relação dessa disputa dinâmica: há um grupo de impulsos que domina e outro que é dominado. É importante frisar que o grupo de forças dominante não é causa do grupo de forças dominado, já que os impulsos, mesmo dominados, continuam atuando e exercendo o seu poder, isto é, não são efeitos das vontades antecedentes. Assim, todo acontecimento é produto de uma constelação de forças onde todos agem – umas “mandam”, outra “obedecem” -, nenhuma renuncia, todas continuam tentando se impor nesse confronto. Sobre isso, Zaratustra afirma algumas características a partir do vivente:
“Mas, para que compreendais minhas palavras do bem e do mal, quero acrescentar, ainda, minha palavra sobre a vida e o modo de ser do vivente.
O vivente, eu segui, percorrendo os maiores e menores caminhos, a fim de conhecer seu modo de ser. […]
Mas, onde quer que eu encontrasse vida, ouvi, também, falar em obediência. Todo vivente é um obediente.
E, em segundo lugar: manda-se naquele que não pode obedecer a si mesmo. É este o modo de ser do vivente.
E foi esta a terceira coisa que ouvi: que mandar é mais difícil que obedecer.
E não somente porque quem manda carrega o peso de todos que obedecem e é fácil que este peso o esmague. […]
Onde encontrei vida, encontrei vontade de potência.”
A afirmação de Zaratustra admite a vontade de potência como o modo de ser de todo vivente, ela designa o modo como toda a configuração vital se dá. A vontade de potência é, portanto, o como se dá a vida, é a descrição do processo ôntico de formação e desagregação das configurações de vida no interior do devir. E na medida em que ela descreve como a vida se dá, descreve como o mundo se autodetermina na dinâmica de autocriação, autodeterminação da vida.
É importante destacar que o conceito de vontade de potência leva às últimas consequências a proposta nietzscheana de negação de princípios metafísicos ou suprassensíveis. Não se admite qualquer categoria a priori que esteja para além da dinâmica de geração de vida, então todos os elementos em jogo precisam se determinar, de alguma maneira, a posteriori. É para se pensar tal determinação a posteriori que Nietzsche afirma a vontade potência como meio pelo qual as forças se dão em uma estrutura essencialmente relacional, na qual cada força só conquista a determinação que é a sua a partir do embate relacional com as demais forças.
Na vontade de potência todas as forças interagem e a luta se mantém. Cada evento não é apenas produto das forças vencedoras, mas o resultado da totalidade beligerante de forças. Todas elas são operantes e formam parte da ocorrência de um fato: algumas adquirem potência, outras perdem potência, mas nenhuma é apenas a consequência da ação das outras. Tudo se transforma no incessante jogo vital, onde tudo que atua em um instante será diferente em outro momento, ou seja, o tempo é a prova da absoluta impermanência da força.
É importante destacar que a vontade de potência, como dinâmica de autodeterminação de forças, guarda o caráter perspectivista e múltiplo. Isto quer dizer que se as verdades não são dadas a nós a priori e sim criadas por nós, elas são, portanto, interpretações que fazemos da realidade; são perspectivas em meio a inúmeras outras. O critério de verdade deixa de ser universal e passa a ser condicionado ao poder que a interpretação possui para se estabelecer.
Sendo todas as interpretações perspectivas; não há qualquer parâmetro de medida no qual se possa provar qual é mais correta e qual é a menos correta, o único critério para a verdade de uma exposição consiste em que medida ela está em condições de se impor contra outras exposições.
O perspectivismo também dá substrato a um outro conceito relativo à vontade de potência: o quanta-de-poder, ou seja, a dinâmica de embate entre forças. A noção de quanta-de-poder traz no nome o que está em jogo, o embate relacional no qual consiste a vontade de potência, a saber, o poder que se concorre e conquista no embate com os demais quanta, caracterizando, dessa maneira, uma dinâmica de resistência e comando. Os quanta-de-poder sempre são perspectivísticos, na medida em que resguardam a indeterminação originária. No entanto, atuando sobre a multiplicidade de elementos em jogo, eles geram uma espécie de direcionamento. Isto significa que no embate se formam hierarquias de perspectivas, nas quais cada quanta impõe afirmativamente sua força interpretativa. Neste embate, as perspectivas mais fortes funcionam como catalisadores que produzem a síntese de uma configuração vital específica, que nada mais é do que uma configuração plural de forças que formam uma unidade vital provisória.
As perspectivas que mandam são o que poderíamos chamar de perspectivas integradoras, na medida em que são capazes de integrar as demais numa “malha de poder”, produzindo um direcionamento perspectivístico na síntese constituída. Ao mandar, porém, uma perspectiva não faz outra coisa senão obedecer ao seu próprio poder que precisa se rearticular juntamente com novas configurações de poder.
Vale lembrar que as perspectivas não são fixas e o quanta de maior poder sintetizador, produtor de integração, está sempre sob o risco de não ser mais capaz de dominar. Daí ser mais difícil mandar, pois se está, a todo momento, correndo o risco de não conseguir integrar novos elementos e de, a partir daí, não dar conta de se atualizar com novas configurações de realidade, sendo “esmagado”, dominado pela total desintegração da unidade que sintetiza. É por isso que cada configuração de vida é apenas uma configuração relativa e provisória que precisa sempre ser conquistada uma vez mais a fim de se conservar. E toda conservação só pode se realizar a partir de uma superação, como afirma Zaratustra: “este segredo a própria vida me confiou: Vê, disse, eu sou aquilo que deve sempre superar a si mesmo.”
A conservação, portanto, a partir do conceito de vontade de potência, só é possível pela superação permanente. Logo, para a manutenção de qualquer estado de vida conquistado é necessário permanecer na superação, elevando sua capacidade de integração para além do que havia estabelecido; estando em constante movimento de superação de si mesmo. Isso é possível porque as forças não se estabilizam neste embate, o que indica que qualquer tentativa de conservação é uma forma de declínio. A vontade de potência é sempre vontade de mais potência, é vontade de autossuperação e isto vai além da própria autoconservação.
A dinâmica aqui é incessante, onde permanece um processo contínuo de constituição de si mesmo; que se estabelece de modo a construir um “caminho do criador” que se estabelece no ciclo integração – destruição – conservação – elevação, que caracteriza a vontade de potência.
Saiba mais sobre Nietzsche:
References:
BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche e a liberdade. 2 ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
MELO, Rebeca Furtado. Artigo Vontade de Poder: a autossuperação como a dinâmica criadora da vida. Leituras de Zaratustra. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2011.
MÜLLER-LAUTER, Wolfang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo: Annablume, 1997.
NIETZSHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra. Trad. de Mário da Silva. 8°ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
______________. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.