A gnose é um sincretismo pré-cristão que se configurou como rival do Cristianismo emergente. É um discurso sobre o conhecimento e o mundo, ou melhor, vários discursos, pelo que se pode falar em gnoses, no plural.
“Tempo houve, belo e glorioso, em que a Europa era uma pátria cristã e em que uma só Cristandade habitava a humanizada harmonia deste continente” (Novalis). Sim, tempos houve em que a Europa se unia em redor da mensagem cristã. Mas essa união (até que ponto efectiva?) só foi conseguida após duros debates teológicos. Que começaram logo no início do Cristianismo, quando este teve de enfrentar a heresia gnóstica. Mas mesmo esta (como outras) acabou por ser importante, na medida em que acabou por ter um papel na definição do que seria o Cristianismo e a sua mensagem.
É também por via deste confronto que percebemos a hostilidade de alguns dos primeiros Padres Apologistas à Filosofia, entendida como fonte daquelas. Tertuliano ou Ireneu depreciam a capacidade da razão humana, mas fazem-no por verem na Filosofia e no excesso racionalista a origem das heresias. Nestes primeiros tempos a nova crença viu-se atacada pelos pagãos, o que originou a necessidade de resposta expressa nas diferentes apologias, mas também foi deturpado enquanto doutrina o que levou à abertura de outro campo de batalha na defesa da fé emergente. “As heresias apresentam-se, umas vezes, predominantemente como tentativa do paganismo para se apoderar de elementos do pensamento cristão. Assim, por exemplo, o gnosticismo ou o maniqueísmo. Outras vezes, e mais geralmente, as heresias resultam de uma tendência para tornar os mistérios da fé acessíveis à razão, de uma tentativa, embora bem intencionada no início, para racionalizar os elementos dogmáticos do Cristianismo, esvaziando-o do seu conteúdo. Assim, por exemplo, o arianismo.
As heresias desempenham um papel importante na determinação da ortodoxia dogmática, no aprofundamento da verdade revelada, na investigação quer das bases os supostos racionais da fé, quer das sequências a extrair da revelação, através da reflexão filosófica. Encaminham a razão para colocar-se ao serviço da fé (…). Se uma das características do pensamento medieval é o esforço de conciliação da razão e da fé, as heresias são, de algum modo, resultados frustrados desses esforços. Por outro lado, as heresias, ao mesmo tempo que encaminham para o estabelecimento de relações entre a razão e a fé, contribuem também de alguma maneira para a delimitação e separação dos domínios de uma e outra” (Pontes).
As heresias estarão, portanto, presentes no âmbito da Cristandade praticamente desde o início. Contribuirão para a desunião no seio da Respublica Christiana, desde a gnose alexandrina às seitas neopentecostais, mas servirão também para a definição doutrinária do Cristianismo. Temos essa situação bem presente, por exemplo, no Concílio de Niceia. Convocado em 325 serviu, desde logo, para a condenação do arianismo e a definição da doutrina trinitária.
O gnosticismo
“Por volta do ano 200 (…) o cristianismo tornara-se uma instituição encabeçada por uma hierarquia tripla de bispos, padres e diáconos, que se consideravam os guardiões da única ‘fé verdadeira’. A maioria das igrejas, dentre as quais assumiu papel preponderante a igreja de Roma, rejeitava como heresia todas as outras concepções. Deplorando a diversidade do movimento anterior, o bispo Ireneu e os seus seguidores insistiram que só podia existir uma única igreja, e fora dessa igreja, declarou Ireneu, ‘não existe salvação’ (Pagels). Naturalmente os demais, os que se encontravam em oposição à ortodoxia, eram colocados (ou colocavam-se?) à margem dessa comunidade de verdade.
“Os esforços feitos pela maioria no sentido de destruir todos os vestígios da ‘blasfémia’ herege foram tão bem sucedidos que, até às descobertas em Nag Hammadi, quase toda a nossa informação relacionada com formas alternativas de cristianismo primitivo provinha de ataques maciços desferidos contra elas. Muito embora o gnosticismo talvez seja a mais antiga – e ameaçadora – das heresias, os académicos conheciam apenas uma mancheia de textos gnósticos originais” (Pagels). Uma heresia que foi, desde início, combatida pelos contemporâneos, como sejam Tertuliano e Ireneu. Mas em que consistia, afinal, a sua doutrina?
“O termo ‘gnóstico’ é vago e abarca significados muito diferentes. No entanto, historicamente, ganhou um sentido privilegiado durante os primeiros séculos da nossa era (…). A gnose é um conhecimento. Era sobre o conhecimento, e não sobre a crença e a fé, que os gnósticos procuravam apoiar-se para edificar a sua imagem do universo e as implicações que dele tiraram (…). Ora, este conhecimento (…) leva-os a ver em toda a criação material o produto de um deus inimigo do homem” (Lacarrière).
Este sincretismo “… tem origens pré-cristãs e provém de uma estranha mescla, desenvolvida a partir da chamada cultura helenística (…) com elementos de religião e mitos do Egipto e do Oriente e da filosofia grega. Parece que também não pode excluir-se a influência de algumas seitas judaicas anteriores ao Cristianismo” (Pontes). Será no século II que o gnosticismo se apoderará de elementos cristãos dando assim origem a diferentes seitas que serão alvo da atenção dos Padres Apologistas. Este é um movimento que acabou por se manifestar através de diferentes seitas: a gnose samaritana (que encontrou em Simão Mago, supostamente, um representante), a gnose siríaca (representada por Saturnilo e Marcião – que viria a ecoar no século XX), a gnose alexandrina ( de Basílides ) e a gnose itálica ( com Valentim ).
Devido a esta diversidade de correntes não se pode falar de um só gnosticismo, pelo que a sua caracterização só pode fazer-se através de uma série de linhas gerais: “No gnosticismo têm as suas primeiras raízes certos aspectos da teologia mística de Gregório de Nissa, assim como a teoria dos Nomes divinos (…). No gnosticismo há duas ideias fundamentais: concepção muito elevada de Deus (com influência do monoteísmo judaico), transcendente, inacessível e incognoscível, como o indicam os dois nomes que se lhe dá: o grande Silêncio e o Abismo; e concepção muito baixa da matéria, concebida como princípio e origem do mal, pelo que Deus, essencialmente bom, não é o criador da matéria nem do mundo sensível, com o qual não tem contacto nem relação directa, pois isso degradaria a sua majestosa transcendência. A distância e a relação entre a Divindade e o mundo sensível é preenchida e explicada segundo a doutrina dos seres intermediários, provenientes da Divindade por emanação (…). Estes intermediários são os éons, que existem desde toda a eternidade, inconscientemente, no Deus supremo, do qual emana um primeiro par e os demais, em emanações descendentes (…).
O problema da origem do mal e da matéria busca explicação inspirando-se no dualismo persa e na teoria dos éons, aparentados com as ideias platónicas: um dos éons, participante da Divindade, pretendeu subir na sua posição e atingir o nível do Ser Supremo, rebelando-se assim contra Ele. Expulso, então, do reino da luz, este éon, que se chama demiurgo e alguns autores gnósticos identificam com Iavé do Antigo Testamento, cria o mundo material e o homem, iniciando-se assim a luta constante entre o homem e Deus. As almas dos homens, espirituais e puras, são parcelas de luz que um éon superior desprendeu do mundo supra-sensível e depôs na matéria, onde estão prisioneiras, esperando ser resgatadas. Para libertar a alma humana, encerrada na matéria, veio outro éon, fiel ao Ser Supremo, o éon Cristo, que comunica às almas o conhecimento da sua verdadeira origem e lhes ensinou o modo de se libertarem da matéria, que é, precisamente, não pelas boas obras mas pelo conhecimento superior” (Menard).
Quando lemos estas linhas lembramo-nos da crença socrático-platónica da libertação pelo conhecimento e da ideia de que pratica o mal não quem quer, mas quem ignora o bem. Assim, o conhecimento aparece efectivamente como o meio para atingir um nível superior. Não é a fé que salva, mas a razão, o conhecimento. Percebemos, deste modo, a hostilidade demonstrada por alguns dos primeiros cristãos face à filosofia, a qual consideravam capaz de desviar o homem do verdadeiro caminho. O excesso de racionalismo demonstrado pela gnose acabou por levar Tertuliano, por exemplo, à desconfiança face à filosofia. Independentemente da necessidade daquele a utilizar quando argumentava contra os adversários, fazendo lembrar a velha máxima segundo a qual mesmo aqueles que negam valor à filosofia têm de recorrer a ela para demonstrar a tese que defendem.
Na sequência do anteriormente exposto, temos que o éon divino, Cristo “… não toma um verdadeiro corpo, já que a matéria é essencialmente má (docetismo). Portanto, não redime por meio do sacrifício e da cruz, mas sim pela gnose que revelou, ensinando o verdadeiro conhecimento com o seu exemplo.
Os gnósticos tinham a pretensão aristocrática de se elevarem acima do vulgo e dividiam os homens em materiais ou hílicos, que constituem a grande massa do género humano: neles domina o elemento material e virão a ser aniquilados, juntamente com a matéria; psíquicos, que não têm a possibilidade de ascender à verdadeira gnose e estão destinados a gozar de uma felicidade secundária; pneumáticos ou espirituais, verdadeiros gnósticos, participantes de um conhecimento mais elevado que o nível da fé (…), inacessível ao comum dos homens e reservado a uma minoria privilegiada” (Pontes).
O gnosticismo foi combatido pelos Padres Apologistas, nomeadamente Tertuliano e Ireneu de Lyon, mas não desapareceu da cena e veio a manifestar-se de forma recorrente ao longo da história. Uma vez assente a doutrina ortodoxa acabou por passar à “clandestinidade”, reaparecendo regularmente sob diferentes formas. A mais conhecida é, provavelmente, a heresia cátara que se desenvolveu sobretudo no sul de França e terá recebido influências do bogomilismo. Também reaparece no marxismo. E em muitas das modernas seitas que, recorrentemente, conduzem os adeptos a fenómenos de suicídio colectivo ou tentativa de antecipação do apocalipse que garantiriam um lugar de destaque aos novos puros. Outra manifestação menos conhecida (e mais polémica) do gnosticismo encontra-se no nacional-socialismo. É para aí que nos viramos em seguida.
“O dualismo maniqueísta entrou no gnosticismo que, apesar de ser perseguido pelo cristianismo, reapareceu em muitas formas diferentes até aos tempos modernos. O gnosticismo é uma tradição de uma complexidade proibitiva, mas a sua visão fundamental de um mundo das trevas governado por forças demoníacas teve um profundo impacto na história da religião (…). Parece ter reaparecido um tipo de gnosticismo entre os cátaros, que floresceram na França do século XII até o papa Inocêncio III ter lançado contra eles uma cruzada (…) que quase os riscou da história. Porém, o gnosticismo não foi destruído. Sobreviveu e reinventou-se, aparecendo sob muitos aspectos inesperados, incluindo – segundo Hans Jonas, autor de um estudo magistral das tradições gnósticas – a filosofia de Martin Heidegger” (Gray).
Curiosamente, não foi apenas em Heidegger (que como sabemos militou no NSDAP) e na sua filosofia que o gnosticismo se terá manifestado. Também na doutrina nacional-socialista terá feito a sua aparição por via do marcionismo e do milenarismo: “Voegelin entendeu o nazismo como – à semelhança do comunismo – uma ressurreição contemporânea do gnosticismo. Não pode haver dúvidas de que as crenças gnósticas tiveram uma grande influência na moldagem do pensamento ocidental, e pode muito bem ter havido influências gnósticas nos movimentos milenaristas medievais, mas há poucos pontos de afinidade entre o gnosticismo e o milenarismo modernos” (Gray).
Mas se a influência gnóstica no milenarismo nacional-socialista pode ter sido reduzida, o contributo marcionista terá sido, certamente, mais visível. Marcião foi um dos primeiros pensadores da gnose, tendo estabelecido uma separação radical entre o Antigo e o Novo Testamentos, a qual seria posteriormente aproveitada pelos nazis: “Marcião considerava que o Deus de Abraão, o Deus criador e justiceiro, não era o mesmo que o Deus de amor salvador, de que Cristo era a emanação. Tinha, pois, arrancado ao corpo escriturário o Antigo Testamento e a parte do Novo que lhe estava directamente ligada. A revelação cristã dissocia-se assim da revelação mosaica, que Marcião não aceita como relato das etapas que conduziram à vinda do Messias (…). Os Judeus, à luz desta heresia, representavam adequadamente a figura do mundo extinto e da ética ultrapassada, obra do mau Deus (…).
O nazismo concentrou-se na versão marcionista do gnosticismo. Aceitou formal e provisoriamente um cristianismo ‘alemão’ que invocava um Deus diverso do de Abraão. Perseguiu os cristãos fiéis. Tentou enriquecer-se com elementos tirados do esoterismo e do ocultismo fim de século. Quis despertar o neopaganismo dos velhos deuses alemães, injuriando assim com esta outra contrafacção o que a mitologia germânica tinha de honroso, de belo e de comum com a de Homero”(Besançon).
E, ao fazê-lo, mostrou a força das ideias. Mostrou como uma crença, supostamente enterrada há séculos, reapareceu sob nova forma. Mostrou como elas, as ideias, são capazes de se adaptar e de evoluir, quase replicando aqui a história ocorrida na Biologia. Numa odisseia que ainda hoje encontra novos capítulos. Mais uma vez, onde menos se espera. Pois, tendo o gnosticismo parasitado igualmente o judaísmo e o islão talvez possamos dizer que é também ele que move, em parte, o que sucede no Iraque e na Síria, vítimas de um grupo, o Estado Islâmico, que talvez deva mais ao maniqueísmo do que aquilo que possa admitir
References:
Besançon, Alain, A Dor do Século, Lisboa, Quetzal, 1999.
Gray, John, A Morte da Utopia, Lisboa, Guerra e Paz, 2008.
Lacarrière, Jacques, Os Gnósticos, Fim de Século, 2001.
Menard, J.E., Les Origines de la Gnose in Revue des Sciences Religieuses, Jan. 1968.
Novalis, A Cristandade ou a Europa, Lisboa, Hiena, 1991.
Pagels, Elaine, Os Evangelhos Gnósticos, Porto, Via Óptima, 1999.
Pontes, J.M. da Cruz, Textos de apoio da cadeira de Filosofia Medieval (fotocopiados), Coimbra, 1992.