Um contributo indelével de Victor Turner na Antropologia, e mais especificamente, para o estudo do ritual e da performance, foi a proposta do conceito de liminaridade, que retrocede num trilho que o conduz à autoridade da figura de Van Gennep, que nos estudos sobre os ritos de passagem construiu a seguinte tríade característica de todo o ritual: a separação, margem (ou “limen”, que em latim significa “limiar”), e agregação.
A liminaridade consiste numa condição em que um indivíduo ou um grupo se furtam às categorias que normalmente os situam em determinado espaço cultural; é uma suspensão do tempo social.
É sabido que em qualquer sociedade as hierarquias determinam a pertença de um sujeito a determinada posição, seja essa sociedade baseada em castas, classes ou oposições segmentares: são sistemas estruturados à base do princípio da diferença. Numa sociedade regida por classes (dialética entre o baixo e o alto) o que seria uma situação de liminaridade? A título de exemplo, o fenómeno da Carnavalização na Idade Média, estudado por Bakhtin. Neste período de “tempo alegre”, as hierarquias (e tudo o que manifestasse desigualdade social) eram abolidas, caso bem ilustrado pelas paródias das liturgias, hinos, salmos, evangelhos e orações, elementos indissociáveis a um período dominado pela Igreja.
Entre os ndembos da Zâmbia, povo com sociedade organizada em oposição segmentar, há um rito de investidura que retrata a suspensão hierárquica: neste, o chefe Kanongesha, antes de receber o título, é colocado numa cabana onde deve morrer simbolicamente para se metamorfosear num homem comum; depois de ser lavado com remédios misturados com água, tem inicio o rito kumukindyla, que literalmente significa “falar palavras más ou insultantes contra ele”. (Turner: 124) No decorrer do ritual, o futuro chefe permanece sentado e silente, enquanto todas as pessoas que julguem ter sido prejudicadas lhe atiram com uma chuva de impropérios, sem que isso implique pagarem um preço pela afronta mais tarde. Neste caso de liminaridade, o povo ndembo de súbdito passa a privilegiado ao exercerem autoridade sobre o chefe.
À dimensão fenomenológica da liminaridade justapõe-se ainda o conceito de communitas, modalidade das relações sociais: refere-se aos vínculos recuperados quando a estrutura hierárquica é invertida; recorda (pelo menos na teoria) aos dominantes que estes não existem sem os dominados.
Num contexto não ritualístico, a liminaridade é um atributo da morte, do estar no útero, da invisibilidade, da escuridão, da bissexualidade, de um eclipse do sol e da lua.
References:
Bakhtin, Mikhail (1987), A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, São Paulo, Hucitec.
Turner, Victor (1974), O Processo Ritual, Petrópolis, Vozes.