Foi James Frazer quem primeiramente compreendeu que o poder político nas sociedades arcaicas estava intimamente ligado a funções rituais, isto é, ao controlo que os líderes políticos exerciam sobre a natureza. Deste modo, o líder sagrado teria que ser executado quando a força o abandonasse, uma vez que tal (este o pensamento) equivaleria ao declínio das forças cósmicas misteriosamente associadas à sua pessoa.
Já Evans-Pritchard negou os moldes ritualísticos do regicídio, entendendo o acto como uma expressão do conflito político entre facções rivais. Porém, estudos realizados em África demonstraram que a execução do soberano constitui uma característica indissociável do complexo simbólico denominado por Frazer como o Direito Divino dos Reis.
Esta instituição mística, pressuposta como garante da fecundidade e prosperidade, define-se por um conjunto de particularidades constantes, embora mais ou menos desenvolvidas em instâncias determinadas. O rei ou chefe sagrado comete transgressões fundamentais: durante a investidura viola o princípio da exogamia, e envolve-se numa relação incestuosa real ou simbólica, ou, ao comer a carne do totem do seu clã, pratica uma forma de canibalismo. Apesar de ser uma figura augusta e formidável, o chefe sagrado é limitado por interdições que regulam a sua conduta. Este ser extraordinário é potencialmente perigoso, e pode ele próprio ser contaminado. Se, externamente ao domínio cultural, o rei for considerado como uma criatura ambígua, tal se deve à responsabilidade pela ordem natural.
Frequentemente, ao envelhecer, o corpo do rei, isolado do grupo, é incapaz de realizar as funções mágicas. Em certos casos, deve desaparecer após um período arbitrariamente fixado, a não ser que um substituto seja sacrificado de forma a serem regeneradas as forças do rei.
O Direito Divino dos Reis é baseado numa separação radical do poder político (essencialmente ritualístico) e da sociedade onde se exerce. Por este motivo não é pura coincidência que inúmeros mitos africanos retratem o fundador do reinado sagrado como um caçador dotado de poderes mágicos ao invés de um guerreiro poderoso. Esta estrutura simbólica, que repete-se em diversos contextos históricos, não é uma representação ideológica mistificada do Estado.
Obviamente que não se deve assumir que seja esta a forma primitiva do direito divino dos reis, mas inúmeros exemplos africanos evidenciam que várias instituições estatais se desenvolveram assentes nesta representação do poder. O Estado, na medida em que implica um sistema de coerção, requer a emergência de instituições mágico-religiosas que não pertencem ao domínio do parentesco, e que de facto são capazes de quebrar o monopólio das instituições de parentesco no âmbito da organização social.
References:
Heusch, L. de (1972) Le Roi ivre ou l’origine de l’étal, Paris (English edn. The Drunken King, Bloomington, IN, 1982).