Nascido em Paris, a 27 de maio de 1894, Louis-Ferdinand Céline, pseudónimo de Louis-Ferdinand Destouches, é sem dúvida uma das personalidades mais controversas do panorama literário e político-ideológico francês de boa parte do século XX.
Proveniente de uma família de classe média baixa, é ainda em criança que conhece a dura realidade social e económica de Paris e, aos 16 anos, torna-se aprendiz de joalheiro. Relatos deste período algo turbulento da sua vida, da infância à adolescência, encontram-se descritos com traços de ironia e comicidade, embora cáusticos e imbuídos de registo popular, na sua obra «Morte a Crédito» (1933).
Em 1912 inicia o serviço militar, o que potencia a sua participação na primeira Guerra Mundial. No entanto, devido a um ferimento e a um tímpano lesado é considerado inválido e é enviado para o Consulado Geral de França em Londres, onde se casa com Suzanne Nebout, divorciando-se pouco tempo depois. Em 1918 integra uma campanha contra a tuberculose, organizada pela Fundação Rockfeller. Após ter concluído o ensino secundário é, em 1920 e ao lado de Édith Follet, sua segunda esposa, que inicia os seus estudos de Medicina, concluindo-os com uma tese intitulada «A vida e obra de Semmelweis» (1924).
Uma vez mais empenhado nas causas da Fundação Rockfeller, viaja pela Europa, Estados-Unidos e África, integrando equipas médicas em variadas missões. Repleto de experiências pessoais e profissionais e novamente divorciado, começa a dedicar-se à escrita da sua obra-prima, «Viagem ao Fim da Noite» (1932). Inspirado pelas várias etapas da sua vida (a guerra, a África colonizada, a América taylorista ou a vida em Paris) e pelas histórias trágicas dos seus pacientes, Céline, através do seu anti-herói, Ferdinand Bardamu, parte em ‘viagem’ numa ‘contra-sociedade’, na qual muitos são explorados, maltratados ou mortos. Temas existencialistas e niilistas como a podridão do ser humano, a alienação, o absurdo da vida e da guerra, ou a errância física e metafísica, estão presentes por todo o livro, suscitando no público leitor um confronto direto com o mal-estar característico do século XX. No que diz respeito ao plano político-ideológico, «Viagem ao Fim da Noite» provocou, assim, reações diversas, do desconcerto ao entusiasmo. Céline, até então desconhecido, surgia aos olhos do público leitor como um autor revolucionário, como um moralista de esquerda e inimigo do sistema. Quanto ao plano literário, o génio ex nihilo do autor consubstancia-se num estilo muito próprio para descrever a ‘viagem’: inspirado pela linguagem popular, inventa e reinventa a língua francesa, oferecendo-lhe um ritmo particular e impregnando-a de obscenidades. A consequência resulta numa intensa polémica e numa reação feroz por entre os círculos académicos, que consideram a escrita de Céline uma provocação. No entanto, apesar de todo este aparato, Céline ganha o prémio Renaudot com a obra que revolucionou estética e estilisticamente a história da literatura francesa.
No ano seguinte, em 1933, começa a escrever «Morte a Crédito», romance autobiográfico no qual, como referido anteriormente, relata as suas turbulentas memórias de infância e adolescência. Os leitores são, então, convidados a acompanhar as suas peripécias numa diegese similar àquela da “Viagem”, embora a escolha vocabular seja ainda mais crua.
Já depois de «Viagem ao Fim da Noite» (1932) ter sido traduzido para o russo, Céline, no Verão desse mesmo ano, parte numa viagem à URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) para finalizar negociações quanto aos direitos de autor. Embora a obra tenha sido recebida calorosamente, a ideia que se fizera deste autor não tarda a desvanecer-se, pois, ainda em 1936, Céline compila as suas desagradáveis impressões de Leninegrado e do regime comunista num panfleto intitulado Mea Culpa. No entanto, este foi um mal menor relativamente ao período que se segue, dado que o escritor começa a frequentar meios de extrema-direita francesa e, aquando da ocupação alemã, assume-se como colaboracionista. Assim, em 1937 e em 1938 são publicados, respetivamente, Bagatelles pour un massacre e L’École des cadavres, furiosos e, certamente, polémicos panfletos antissemitas cuja reedição é ainda hoje proibida em França e noutros países.
Toda a polémica e retórica anti-Céline por parte da imprensa, a par de acusações de difamação dirigidas tanto ao autor como aos editores, ou do decreto Marchandeau que condenava o antissemitismo, não foram suficientes para impedir o autor de, em 1939, começar a redigir o seu terceiro e último panfleto, Les Beaux Draps.
Em 1944, e com o Dia D a despontar no horizonte, é editado Guignol’s band, que anuncia o regresso às vivências do anti-herói de Céline, Ferdinand, por terras anglo-saxónicas durante a I Guerra Mundial.
Pouco dias após o desembarque das tropas na Normandia, Céline e sua companheira pensam em fugir para a Dinamarca, mas são retidos em Baden-Baden, na Alemanha. Na impossibilidade de obterem vistos, são transferidos para Sigmaringen onde Céline trabalha como médico ao serviço de elementos do governo de Vichy. Os momentos vividos sob grande tensão nestas duas cidades em chamas e à beira de ruínas são relatados, respetivamente, em Nord e em D’un château l’autre, obras que fazem parte da chamada trilogia alemã[1].
Finalmente, em Março de 1945, chegam a Copenhaga mas, no mês seguinte, são acusados de traição e detidos. No entanto, enquanto Lucette, a sua companheira, é rapidamente posta em liberdade, Céline permanece preso por mais uns anos. Em 1950, Céline, por decisão judicial, além de ter de pagar cinquenta mil francos e de grande parte dos seus bens serem confiscados, é condenado a mais um ano de prisão. Por fim, cumprida a pena, é-lhe concedida a amnistia e volta para França com Lucette, mais precisamente para Meudon, onde residirá até falecer. Entretanto, ao tomar conhecimento que o seu editor tinha sido assassinado em Paris, assina um contrato com a editora Gallimard, que implica não só a reedição das suas obras mas também a publicação do primeiro volume de Féerie pour une autre fois (1952), livro em que relata os seus momentos lúcidos de isolamento e de solidão, não obstante pautados por delírios, quando esteve preso na Dinamarca.
O período final da vida de Céline, mais sereno e durante o qual também volta a exercer medicina, revela-se muito fértil no respeitante à criação artística: em 1954 são publicados o segundo volume de Féerie pour une autre fois, intitulado Normande (1954) e Entretiens avec le professeur Y (1955), pequeno livro em que o autor, em tom de confissão mas com toques de comicidade, é auxiliado por um jornalista imaginário na apresentação das suas ideias quanto à literatura ou à controvérsia em torno do seu estilo, nomeadamente o constante emprego de reticências. No dia 1 de Julho de 1961, Céline conhece a morte sob forma de um aneurisma e morre em sua casa, em Meudon.
Para a posterioridade fica, assim, uma personalidade peculiar e inovadora, controversa e polémica; um escritor que fez das suas palavras o reflexo da paródia amarga e desconcertante que foi o século XX, nomeadamente as duas guerras mundiais, e que ofereceu à língua francesa uma nova identidade; um perturbador de consciências; um ser humano, afinal, incompreendido e que deixou de crer na humanidade.
[1] No respeitante a esta trilogia foram publicados, até à data, Castelos Perigosos (2008) e Norte (2009) pela editora Ulisseia. As traduções são de Clara Alvarez.
References:
Darcos, Xavier. Histoire de la littérature française. Paris: Hachette, 1992.
Hirsch, Mikaël. “Tous céliniens ? ”. In Le Magazine Littéraire, nº 505, Fevereiro de 2011, pp. 50-54.