Bernardo Soares

Olhar sobre a biografia de Bernardo Soares e as principais características estilísticas e temáticas d’ «O Livro do Desassossego»

Bernardo Soares foi um semi-heterónimo criado por Fernando Pessoa. Segundo este último, Soares é um semi-heterónimo porque “não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade.”1 Por outras palavras, Bernardo Soares surge como um fragmento da personalidade do próprio Pessoa e, neste sentido, denotam-se pontos de encontro entre as biografias de ambos, na medida em que, por exemplo, os dois foram ajudantes de guarda-livros em Lisboa, trabalharam em vários escritórios na baixa pombalina e apreciavam andar de elétrico pela cidade. Ao cruzar, assim, ficção e realidade, Pessoa dá voz a Bernardo Soares, o qual regista as suas impressões, devaneios e coordenadas da realidade frequentemente recompostas através do sonho num diário intitulado «O Livro do Desassossego».

Também o facto de este diário se apresentar repleto de retalhos, com uma natureza fragmentária e sem linearidade, deixa transparecer alguns dos momentos mais angustiantes de Pessoa. Como o próprio afirma, “o meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos.”2 No entanto, apesar da narrativa entrecortada, ou de uma estrutura aparentemente desorganizada, o livro surge, paradoxalmente, aos olhos do leitor como um todo completo e consistente.

Para uma maior compreensão da obra e do próprio carácter de Bernardo Soares (que, na verdade, auxilia Pessoa a refletir sobre si próprio e sobre a identidade do sujeito moderno), é fulcral um breve olhar sobre o prefácio, no qual Pessoa apresenta o seu semi-heterónimo e descreve o encontro entre os dois.

Consta que uma das rotinas de Pessoa consistia em ir almoçar, ou jantar, a uma casa de pasto em Lisboa. Uma noite, enquanto jantava, reparou na presença de um indivíduo com cerca de 30 anos que, pouco a pouco, começou a despertar-lhe interesse. Estava vestido com um “certo desleixo não totalmente desleixado”3 e “na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava – parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito.”4 Depois de ambos começarem uma conversa casual, Fernando Pessoa deixa-se cativar ainda mais pelo facto de Bernardo Soares nutrir um especial interesse na observação das pessoas e comenta, ainda, a aura de mistério que o envolve, o seu ar de indiferença perante a sociedade moderna, ou o prazer que experiencia em deambular solitário pelas ruas, captando e desdobrando as mais variadas impressões.

De facto, lembrando Cesário Verde, Bernardo Soares oferece ao leitor novas paisagens a partir de uma extraordinária transfiguração de imagens, sons e ritmos, assim como um leque de reflexões filosóficas e uma verdadeira apologia à supremacia do ato de sonhar, a única verdade na vida de Bernardo Soares.

Características da prosa de Bernardo Soares ao nível da linguagem, do estilo e da estrutura:

  • natureza fragmentária da obra (é composta por cerca de 500 fragmentos);
  • registo cuidado que traduz não só as impressões do dia a dia, como também denota originalidade, típica da escrita modernista que domina o livro;
  • sintaxe complexa, com ruturas de categorização, pois existe um incumprimento intencional dos mecanismos de coesão frásica;
  • predomínio das sinédoques, das metáforas, dos paradoxos e dos oximoros.

Temáticas presentes na prosa de Bernardo Soares:

  • perceção e transfiguração poética da realidade através do sonho;
  • o imaginário urbano (que parte de um mundo de perceções e de sensações originadas pela memória) e a modernidade (“fábricas”, “máquinas”, “operários”, “automóveis”);
  • a vida quotidiana do narrador e da cidade de Lisboa.

Passagens ilustrativas d’ «O Livro do Desassossego»:

  • “Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida.”
  • “O coração, se pudesse pensar, pararia.”
  • “Quando outra virtude não haja em mim, há pelo menos a da perpétua novidade da sensação liberta.”
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References:

1 Pessoa, Fernando. Escritos Íntimos, Cartas e Páginas (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Lisboa: Publ. Europa-América, 1986. Disponível em:

http://arquivopessoa.net/textos/3007

2 Pessoa, Fernando. Carta a Armando Côrtes-Rodrigues – 19 Nov. 1914. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/3493  

3Pessoa, Fernando, «Prefácio», in Richard Zenith (ed.), Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2014

4idem

Diogo, Américo António Lindeza , «Livro do Desassossego», in José Augusto Cardoso Bernardes et al. (dir.), Biblos, Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa: Verbo, 1999

 

 

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