As cantigas de escárnio e maldizer, a par das cantigas de amigo e das cantigas de amor, são um género pertencente à lírica galego-portuguesa, a qual floresceu em finais do século XII no Ocidente da Península Ibérica.
Estas cantigas apresentam uma característica singular que as diferencia das outras duas, ou seja, enquanto as cantigas de amigo e as cantigas de amor elegem o amor como temática central, as de escárnio e maldizer são composições poéticas com uma dimensão satírica, apresentando, deste modo, uma crítica aos comportamentos e aos vícios da sociedade da Idade Média. Nas palavras de Giuseppe Tavani 1, “neste género cabiam e cabem todos os textos que não apresentam as peculiaridades das cantigas de amor ou das cantigas de amigo”: “não apenas as sátiras morais e políticas, as sátiras pessoais e maledicências pessoais, como também prantos, tenções e paródias” 2.
Neste sentido, as cantigas de escárnio e maldizer apresentam sobretudo uma crítica às personagens da corte e respetivos comportamentos. Os maus trovadores, os guerreiros cobardes, aqueles que não tinham qualquer tipo de competência e até a fealdade de algumas raparigas ou mulheres eram objeto de troça. Porém, a crítica também se estende a personagens exteriores à corte, não poupando, assim, nenhum estatuto social nem qualquer ofício.
Embora estas cantigas estejam compiladas no mesmo género e estabeleçam pontos de contato umas com as outras há certas diferenças entre elas. As cantigas de escárnio são cantigas nas quais o trovador faz troça de uma determinada pessoa indiretamente, recorrendo ao duplo sentido e à ambiguidade que as palavras oferecem, à ironia, à alusão e à sugestão jocosa. As cantigas de maldizer, por sua vez, são cantigas em que o trovador ridiculariza determinada pessoa de forma direta, criticando, por exemplo, situações de adultério, amores interesseiros ou ilícitos. Por outras palavras, faz-se uma paródia do amor cortês.
Vejam-se abaixo, respetivamente, um exemplo de uma cantiga de escárnio, da autoria de Joam Garcia de Guilhade, e de uma cantiga de maldizer, da autoria de Pero Garcia Burgalês.
Cantiga de escárnio
Ai, dona fea, fostes-vos queixar
que vos nunca louvo em meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, se Deus mi pardom,
pois avedes atam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçom:
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora ja um bom cantar farei,
em que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!
Cantiga de maldizer
Roi Queimado morreu com amor
em seus cantares, par Santa Maria,
por uma dona que gram bem queria;
e, por se meter por mais trobador,
por que lh’ ela non quiso bem fazer,
feze-s’ el em seus cantares morrer,
mais resurgiu depois, ao tercer dia.
Este fez ele por uma sa senhor
que quer gram bem; e mais vos ém diria:
por que cuida que faz i mestria,
enos cantares que fez, á sabor
de morrer i e des i d’ ar viver;
esto faz el, que x’ o pode fazer,
mais outr’ omem per rem nono faria.
E nom á já de sa morte pavor,
se nom, sa morte mais la temeria,
mais sabe bem, per sa sabedoria,
que viverá, des quando morto for;
e faz-s’ em seu cantar morte prender,
des i ar vive: vedes que poder
que lhi Deus deu, – mais queno cuidaria!
E se mi Deus a mi desse poder
qual oj’ el á, pois morrer, de viver,
já mais morte nunca eu temeria.
No que diz respeito à estrutura formal destas cantigas, a sua maior parte é composta por cantigas de mestria, embora quase um terço inclua refrão.
Relativamente à linguagem, esta associa-se frequentemente ao sarcasmo e ao humor, recorrendo a trocadilhos e, muitas vezes, a expressões obscenas. Os diminutivos e os aumentativos também estão ao serviço da zombaria.
References:
1 Tavani, Giuseppe, «Cantiga de escarnho e maldizer», in Giulia Lanciani, Giuseppe Tavani (coord.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993
2 idem
Lanciani, Giulia. Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993