Auto da Barca do Inferno

Olhar sobre as principais características da peça vicentina “Auto da Barca do Inferno”

O «Auto da Barca do Inferno» é um texto dramático da autoria de Gil Vicente (c.1465 – c.1536), dramaturgo da corte portuguesa do século XVI.

Esta obra, que foi representada pela primeira vez em 1517 em virtude de uma encomenda da rainha D. Lianor, faz parte de uma trilogia intitulada «Barcas» [1] e comporta em si uma forte contextura alegórica: todo o auto é uma alegoria do Juízo Final e as personagens representam variadas entidades (como, por exemplo, a Igreja), tipos sociais (como é o caso do Sapateiro) e valores (como o Bem ou o Mal).

Embora estabelecendo pontos de contacto com a farsa, o género deste auto foi considerado pelo próprio Gil Vicente como uma “moralidade”, na medida em que esta pretendia corrigir o comportamento dos espetadores através da denúncia dos vícios e dos costumes da sociedade quinhentista. Neste sentido, no caso das «Barcas», a moralidade parte de valores teológicos para culminar num âmbito mais político-social, sublinhando a ideia de que o Bem é compensado e o Mal é castigado.

Aliado à denúncia, é importante também o facto de o autor ter optado pelo processo do Ridendo castigat moraes (A rir, se castigam os costumes), recorrendo a três tipos de cómico: o cómico de linguagem, o cómico de situação e o cómico de personagem. O primeiro resulta do próprio discurso e do vocabulário (trocadilhos, ironia, calão), o segundo decorre do ridículo das circunstâncias que envolvem as personagens e, por fim, o terceiro advém da caracterização física das personagens e das personalidades que as mesmas encarnam.

Enredo

A peça inicia-se num porto imaginário onde estão duas barcas, a Barca da Glória e a Barca do Inferno. Nelas encontram-se, respetivamente, o Anjo e o Diabo. De seguida, Gil Vicente faz desfilar toda uma galeria de personagens post-mortem que terão de enfrentar um poderoso tribunal e argumentar contra o Anjo e o Diabo para tentar a sua sorte e embarcar na Barca da Glória. No entanto, só os Quatro Cavaleiros é que embarcam, pois morreram em batalha, em nome de Cristo. O Parvo Joane, por sua vez, fica no cais de embarque, movimentando-se aleatoriamente e funcionando como um comentador irónico dos acontecimentos que vão sendo relatados.

Personagens

Para se proceder a uma análise das personagens deste auto, há que ter em conta a individualidade própria de cada uma delas e a sua representatividade social. O Anjo e o Diabo são personagens alegóricas, pois, como referido anteriormente, representam, respetivamente, o Bem e o Mal. As restantes são designadas personagens-tipo, porque cada uma delas representa uma classe social, uma profissão ou um credo e são o paradigma de um determinado vício. De facto, cada uma destas personagens-tipo faz-se acompanhar de algo ou de alguém representativo da sua vida terrena, traduzindo, assim, o não arrependimento das mesmas.

Fidalgo: o fidalgo D. Anrique, arrogante e orgulhoso, representa a nobreza e traz consigo um manto e um pajem que, por sua vez, transporta uma cadeira. Estes elementos simbolizam a opressão e a tirania.

Onzeneiro: esta personagem representa a burguesia e faz-se acompanhar de um bolsão, o qual simboliza a usura e a ambição.

Parvo: o parvo Joane, personagem simples e humilde, chega ao cais desprovido de qualquer elemento cénico e não representa nenhum estatuto socioeconómico.

Sapateiro: o sapateiro Joanatão, que engana e rouba as pessoas, representa os artesãos, mais especificamente o povo. Entra em cena com um avental e com formas de sapatos, tudo simbolizando a sua profissão e os seus pecados.

Frade: o Frei Babriel, mundano e desrespeitador dos votos de castidade, representa o clero. Traz consigo um hábito, equipamento de esgrima e uma moça de seu nome Florença. Estes símbolos representam o desajuste entre a vida religiosa e a vida de prazeres que levava.

Alcoviteira: a alcoviteira Brízida Vaz, hipócrita e proxeneta, entra em cena acompanhada de um número considerável de adereços/símbolos cénicos como, por exemplo, seiscentos virgos postiços, três arcas de feitiços, três armários de mentir, ou joias. Todos estes símbolos são representativos da sua atividade de alcoviteira ligada à prostituição.

Judeu: esta personagem, que cometeu várias ofensas à religião cristã, representa os judeus. Traz consigo um bode que simboliza a sua religião.

Corregedor e Procurador: ambas as personagens, que entram em cena em conjunto, representam a justiça e é-lhes criticado o facto de serem corruptos, de contornarem a lei. O primeiro faz-se acompanhar de uma vara e de processos e o segundo de livros jurídicos, símbolos que apontam para a sua profissão.

Enforcado: esta personagem representa o povo, mais especificamente os criminosos, e entra em cena com uma corda ao pescoço, representativa da crueldade que cometera em vida.

Quatro Cavaleiros: esta personagem coletiva, que entra em cena a cantar, representa as Cruzadas e traz consigo o hábito da Ordem de Cristo e espadas.

O percurso cénico das personagens, com exceção do Parvo e dos Quatro Cavaleiros, compreende o cais, a Barca do Inferno, a Barca da Glória e novamente a Barca do Inferno.

[1] Desta trilogia fazem parte, respetivamente, a «Barca do Inferno» (1517), a «Barca do Purgatório» (1518) e a «Barca da Glória» (1519). Embora estas peças assegurem uma certa continuidade entre si, todas conservam a sua autonomia e especialidade próprias.

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References:

Dias, Ana Paula. Para uma Leitura de Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. Barcarena: Presença, 2002.

Alçada, João Nuno. Por Ser Cousa Nova Em Portugal. Oito ensaios vicentinos. Coimbra: Angelus Novus, 2003.

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