Considerado o “pai” do teatro português, Gil Vicente deixou-nos um legado importantíssimo no que diz respeito a textos dramáticos e a textos líricos. Redigidos tanto em português como em espanhol, constituem documentos históricos essenciais para conhecer a sociedade quinhentista.
Mesmo que os dados biográficos do dramaturgo português sejam escassos, foram várias as teses sobre a sua figura. Neste sentido, pensa-se que Gil Vicente terá nascido por volta de 1465, na cidade de Guimarães, e que terá falecido em 1537, na cidade de Évora, na medida em que a sua última obra, «Floresta de Enganos», tinha sido publicada no ano anterior, 1536.
Uma das teses com maior pertinência orbita à volta possibilidade da identificação de Gil Vicente com o ourives a quem é atribuída a Custódia de Belém 1. No entanto, o historiador António José Saraiva (1917-1993), por exemplo, rejeita qualquer identificação entre o poeta e o ourives, já que o considera um homem letrado ao invés de ter exercido qualquer atividade de artesão. De facto, se Gil Vicente dá mostras de uma cultura clerical profunda, o que revela uma formação escolar, também é verdade que as suas obras, nomeadamente os autos, estão imbuídas em termos técnicos oriundos do mundo da ourivesaria.
Outras teses defendem, ainda, que Gil Vicente fora um mestre da balança na Casa Moeda, ou que teria estudado Teologia.
O grande dilema reside em tentar chegar-se a um acordo entre as suas características civis e as qualidades literárias e culturais que as suas obras manifestam.
Apesar de todos estes dilemas, as suas obras registam determinadas marcas que são fulcrais para um entendimento da sua biografia. A título de exemplo, a utilização de um falar beirão enquanto registo linguístico na fala de alguns personagens, remete para a sua naturalidade. Muitas vezes, Gil Vicente também utilizara o saiaguês, um falar extremamente rústico, para caracterizar personagens oriundas do meio rural e para criar efeitos do cómico.
Quanto ao estatuto de Gil Vicente na corte portuguesa, este pode ser explicado com base nos registos de D. Lianor, que se notabilizara pelo seu apoio às artes e às letras e lhe encomendara um número considerável de peças.
Neste sentido, o seu nome apareceu pela primeira vez em 1502, enquanto encenador da peça «Auto da Visitação», a qual fora encomendada em virtude do nascimento do príncipe herdeiro, D. João III. Esta obra funciona, assim, como uma espécie de um prólogo, que abre as compilações de Gil Vicente.
É possível dividir a totalidade da sua obra em três fases: a primeira apresenta peças de índole religiosa, como é o caso do acima referido «Auto da Visitação», a segunda abrange a sátira social e, por fim, a terceira enquadra todas aquelas peças que enveredam por uma crónica de costumes, como «A Farsa de Inês Pereira» ou a Trilogia das Barcas.
1 A Custódia de Belém diz respeito à mais célebre obra de ourivesaria portuguesa, a qual representa a Santíssima Trindade. Foi lavrada com o ouro que Vasco da Gama trouxera da sua segunda viagem a Coulão, na Índia.
Obras de Gil Vicente:
- «Auto da Visitação» (1502)
- «Auto Pastoril Castelhano» (1502)
- «Auto dos Reis Magos» (1503)
- «Auto de S. Martinho» (1504)
- «Auto da Índia» (1509)
- «Auto da Fé» (1510)
- «Auto das Fadas» (1511)
- «O Velho da Horta» (1512)
- «Exortação da Guerra» (1513)
- «Auto da Sibila Cassandra» (1513)
- «Comédia do Viúvo» (1514)
- «Quem tem Farelos» (1515)
- «Auto dos Quatro Tempos» (1516)
- «Auto da Barca do Inferno» (1517)
- «Auto da Barca do Purgatório» (1518)
- «Auto da Alma» (1518)
- «Auto da Barca da Glória» (1519)
- «Auto do Deus Padre» (1520)
- «Comédia de Rubena» (1521)
- «Cortes de Júpiter» (1521)
- «Auto da Fama» (1521)
- «Pranto de Maria Parda» (1522)
- «Farsa de Inês Pereira» (1523)
- «Auto Pastoril Português» (1523)
- «Auto dos Físicos» (1524)
- «Frágua d’Amor» (1524)
- «Farsa do Juiz da Beira» (1525)
- «Farsa das Ciganas» (1525)
- «Dom Duardos» (1525)
- «Templo d’Apolo» (1526)
- «Breve Sumário da História de Deus» (1526)
- «Diálogo dos Judeus sobre a Ressurreição» (1526)
- «Nau d’Amores» (1527)
- «Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra» (1527)
- «Farsa dos Almocreves» (1527)
- «Auto Pastoril da Serra da Estrela» (1527)
- «Auto da Feira» (1528)
- «Auto da Festa» (1528)
- «Triunfo do Inverno» (1528)
- «O Clérigo da Beira» (1530)
- «Jubileu d’Amores» (1531)
- «Auto da Lusitânia» (1532)
- «Auto de Mofina Mendes» (1532)
- «Romagem de Agravados» (1533)
- «Amadis de Gaula» (1533)
- «Auto da Cananeia» (1534)
- «Floresta de Enganos» (1536)
References:
Saraiva, António José. Gil Vicente, Reflexo da Crise. Lisboa: Gradiva, 2000
Saraiva, António José. Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval. Lisboa: Gradiva, 1992