O Bêbado e a Equilibrista

«O Bêbado e a Equilibrista»: contexto político, criação, relação entre a letra e a realidade e impacto da canção de João Bosco e Aldir Blanc, de 1978, que se tornou hino da anistia no Brasil, em 1979.

Introdução

«O Bêbado e a Equilibrista» é uma canção brasileira escrita por João Bosco e Aldir Blanc, em 1978, e lançada na voz de Elis Regina no ano seguinte. O tema tornou-se um hino contra a ditadura e o hino da própria anistia, que permitiu o regresso de tantos exilados políticos ao país. Num dos versos – “sonha com a volta do irmão do Henfil” – é referenciado o cartoonista Henrique de Sousa Filho que, na época, tinha um irmão, o sociólogo Hebert José de Sousa (Betinho), exilado no exterior.

Contexto político

O Ato Institucional n.º 5, AI-5, de 13 de Dezembro de 1968, deu início a um período de rigoroso regime militar que vigorou até ao ano de 1978. No entanto, os vestígios da ditadura só viriam a ser completamente eliminados em 1985. Neste período, os censores governamentais monitoravam a liberdade de imprensa e as manifestações artísticas e sociais.

Como consequência, foram muitos os jovens, os intelectuais e os artistas que se manifestaram e, por isso, acabaram presos, mortos ou exilados. Entre estes encontravam-se, por exemplo, os músicos Caetano Veloso e Gilberto Gil e o sociólogo e activista Hebert José de Sousa (Betinho), irmão do cartoonista Henrique de Sousa Filho (Henfil), que foi obrigado a deixar o país em 1971. O jornalista Wladimir Herzog não teve a mesma sorte e morreu em 1975 nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, o que sensibilizou e mobilizou inúmeras pessoas contra a violência perpetuada pelos militares.

Em 1979, depois de uma ampla mobilização social, foi promulgada a Lei da Anista, que devolveu as liberdades civis aos presos e exilados políticos que puderam, assim, regressar o país.

Composição da canção

Apesar do teor político da canção, a verdade é que «O Bêbado e a Equilibrista» surgiu como um simples desejo de João Bosco de homenagear Charles Chaplin, falecido em Dezembro de 1977. Em entrevista o artista afirmou: “Estava em Minas, naquelas festividades de Natal e Ano Novo, e as pessoas entrando já no clima carnavalesco. Comecei a querer fazer no violão algo que ligasse o Chaplin àquele momento musical brasileiro, carnavalesco”. O compositor admirava o actor pelo modo como tratava temas humanos, posicionando-se sempre a favor dos mais desfavorecidos – do vagabundo Carlitos, por exemplo – mas com alegria e sempre com o olhar num horizonte melhor. Associava-a ao sorriso e, por isso, começou a dedilhar no violão algo que ligasse o Chaplin ao carnaval brasileiro, seguindo um pouco a linha da música «Smile».

João Bosco chamou a sua casa Aldir Blanc para lhe mostrar a harmonia que tinha escrito. Contudo, no entretanto, Blanc encontrou-se com Henfil e Chico Mário, que falavam muito sobre o irmão que estava no exílio, Betinho. Afectado pela conversa, ligou para Bosco para sugerir a criação de um personagem baseado em Chaplin que explorasse a questão dos exilados. A sua resposta, afirmativa, foi um simples “Manda bala. O problema é seu”.

A letra e a realidade em «O Bêbado e a Equilibrista»

“Caía a tarde feito um viaduto / E um bêbado trajando luto / Me lembrou Carlitos”

Os compositores escolheram a personagem Carlitos, do filme «Tempos Modernos», para prestar a homenagem ao actor. Nesta obra, Chaplin interpretava, com um humor peculiar as peripécias de um operário fabril preso injustamente porque não se adequava à sociedade industrial.

Na letra, o viaduto é uma referência real ao viaduto Paulo Frontin, no Rio de Janeiro, que no dia 20 de Novembro de 1971 desabou atingindo mais de 20 veículos e provocando a morte de 27 pessoas, além de dezenas de feridos. Nos dias que se seguiram à tragédia a população, sensibilizada, acompanhou o resgate dos corpos e das vítimas da tragédia. Décadas depois, ainda não foram apuradas verdadeiramente as responsabilidade e várias acções de indemnizações continuam a movimentar-se no sistema judiciário. Os primeiros versos são uma menção óbvia à tragédia mas a figura do Carlitos dava o mote para a esperança em dias melhores.

“Louco / o bêbado com chapéu-coco / fazia irreverências mil pra noite do Brasil”

Com estes versos, os compositores abordam o sufoco das torturas sofridas por tantos brasileiros durante o tempo da ditadura: “do mesmo modo que o Carlitos fazia irreverências diante a opressão capitalista, o bêbado tomava para si o chapéu-coco enquanto o Brasil estava nos anos ditatoriais da escuridão. Era comum naquele período que as pessoas contrárias ao Governo Militar fossem acusadas de terrorismo e temidas pela sociedade como alguém fora do seu juízo normal, embriagadas por ideais comunistas, contrários à moral e aos bons costumes” (Silva, 2016, p.119).

“Meu Brasil que sonha com a volta do irmão Henfil / Com tanta gente que partiu num rabo de foguete”

Finalmente, já na segunda parte da canção, Bosco e Blanc adereçaram factualmente o exílio do sociólogo Betinho, irmão de Henfil, e todos os outros que se viram forçados a partir, na mesma situação.

“Chora a nossa pátria mãe gentil / Choram Marias e Clarices no solo do Brasil”

Aqui os nomes não foram menções casuais. Remetiam efectivamente para o nome de duas esposas cujos maridos pereceram vítimas da tortura do regime militar. Maria era o nome da esposa do operário Manuel Fiel Filho e Clarice o nome da esposa do jornalista Wladimir Herzog.

«O Bêbado e a Equilibrista» termina, depois, com uma nota positiva, encorajando à luta contra a ditadura com esperança – equilibrista – por dias melhores, apesar de todos os perigos, onde mesmo uma simples canção podia ser um risco para um artista:

“Mas sei, que uma dor assim pungente

Não há-de ser inutilmente a esperança

Dança na corda bamba da sombrinha

E em cada passo dessa linha pode-se machucar

Azar!

A esperança equilibrista

Sabe que o show de todo o artista

Tem que continuar”

O poder da canção

Depois de gravar pela primeira vez «O Bêbado e a Equilibrista», Elis Regina enviou a gravação a Henfil: “Ela ficou chorando o tempo todo. Talvez tenha antevisto a importância que teria essa música, coisa que não percebi” (Falcão, 2014). Quando a ouviu pela segunda vez, já concluída, era-lhe evidente “que a anistia ia sair” (Falcão, 2014). Pouco depois, o tema de João Bosco e Aldir Blanc, tornou-se a canção mais popular do disco de Elis «Essa Mulher», de 1979, e ganharia o apelido de Hino da Anistia. A música começou a mobilizar cada vez mais pessoas para a causa e os números nos comícios multiplicavam-se.

De acordo com a cantora, “grande parte da população anseia por encontrar um Carlitos deste e sonha não ver mais nem Marias nem Clarices chorando (Regina, 1979)” (Silva, 2016, p. 121).

A anistia foi declarada pouco depois da canção ter caído no gosto do público, em Agosto de 1970. Se por um lado muito exilados puderam regressar a solo brasileiro e muitos presos políticos foram libertados, também é verdade que muitos militares acusados de crimes de violação dos direitos humanos foram igualmente anistiados, deixando um travo amargo na boca daqueles que lutaram pela liberdade.

Não obstante, e regressando ao «O Bêbado e a Equilibrista» é tão inegável quanto fundamental o reconhecimento do valor simbólico da canção que traduziu “a esperança equilibrista de dias melhores e, a partir de então, contagiar os bêbados embriagos pelo sonho de viver em um país democrático” (Silva, 2016, p. 125).

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References:

Falcão, A. (2016). O bêbado e  equilibrista: em 1979, Elis Regina deu voz ao Hino da Anistia. Portal EBC. Em http://www.ebc.com.br/cultura/2014/08/o-bebado-e-a-equilibrista-em-1979-elis-regina-deu-voz-ao-hino-da-anistia

Silva, F.L. (2016). O poético e o factual na letra da canção “O bêbado e a equilibrista”. Revista Alpha, Patos de Minas 17 (1), 115-127.

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