Vigilância
Uma grande maioria da humanidade está a par do seguinte facto contemporâneo: os nossos dados pessoais estão armazenados em diversas bases de dados organizacionais e institucionais, para que assim as nossas imagens e preferências sejam usadas por essas mesmas células. Por exemplo, quando é requerida a nossa identificação para que possamos aceder a certas páginas virtuais, tal pedido é realizado recorrendo esse motor à autentificação por intermédio de um PIN, do número de identificação que consta no Cartão do Cidadão, ou com a inserção do número de telemóvel.
Na mesma óptica, não nos surpreende vermos o nosso rosto nas câmaras de vigilância que salvaguardam algumas ruas ou centros comerciais, e temos a percepção de que as nossas transacções, chamadas telefónicas, e e-mails, são avaliadas e processadas. Com efeito, os dados pessoais são extremamente valiosos para inúmeras agências, desde companhias de seguros até à polícia.
E, não obstante esta dimensão nada estranha ao senso comum, ainda assim o fenómeno, quando perscrutado com minúcia, se revela mais complexo e profundo, uma vez que nem todos os cidadãos ordinários, trabalhadores, viajantes, e consumidores, estão a par da real proporção e significância da vigilância nos dias de hoje. Dados pessoais do foro negocial valem biliões de dólares, motivo o qual incentivou os departamentos governamentais e as agências de cumprimento da lei, a elaborarem sofisticados sistemas para processarem tais dados. Nestas circunstâncias, a vigilância envolve inexoravelmente questões de poder e a distribuição de direitos e responsabilidades.
Se por um lado, poderão surgir questões iminentemente relacionadas com o sentido que tem ainda em falar-se de uma esfera privada, por outro lado, os assuntos públicos exigem igual atenção, sobretudo no que respeita ao modo como a vigilância controla as nossas escolhas e oportunidades de vida, e como afecta valores como a fidedignidade nas instituições.
História e Definição
A vigilância é tão arcaica quanto a história humana, mas nas últimas décadas expandiu-se de modo a assumir uma posição central nos debates sociológicos contemporâneos. As razões são complexas, mas relativamente claras: a promulgação e o uso de novas tecnologias de vigilância criaram uma situação na qual as capacidades de controlo são incomparáveis e sem precedentes. Foco de disputas políticas, a noção vigilância tem, adicionalmente, sido também analisada com o aparato conceptual legado por Michel Foucault.
Define-se a vigilância como uma atenção sistemática e focada nos detalhes pessoais, cujo propósito se prende com os jogos de influências, gestão, ou controlo. No entanto, nem toda a “observação” é focada e sistemática, mas um “olhar sobre”, tal como o verbo francês surveiller implica. Este olhar sobre pode ser literal, como o olhar dos assistentes sociais direccionado às crianças, ou as câmaras de vigilância colocadas nas intersecções urbanas. As nossas actividades podem ser “vistas” nos dados registados nas chamadas telefónicas ou nas transacções bancárias.
Antes de se considerarem algumas situações contemporâneas, deve ser notada a história da vigilância. Civilizações antigas, como a civilização chinesa ou romana, usavam censos para o propósito de taxarem os cidadãos. Neste sentido, compreende-se que os supervisores insistissem no controlo da mão-de-obra para assim garantirem que os projectos fossem concretizados correctamente e no prazo estipulado. O uso de relógios, a partir do século XIII, auxiliou todo este empreendimento. A criação de mapas constituiu igualmente um modo de localizar, em termos gerais, as massas populacionais. Portanto, tanto a supervisão directa como a preservação de registos, representam práticas antigas de coordenação e controlo.
Com o advento da Modernidade, inúmeras técnicas de controlo foram rotinizadas e sistematizadas: de facto, a Modernidade define-se em parte por estes dois ângulos. Os métodos burocráticos de organização, incorporados numa hierarquia estruturada por um certo conjunto de regras, e na qual a comunicação obedece aos comandos do poder, foram examinados por Max Weber. No entanto, também Karl Marx observou astutamente que nas organizações capitalistas existem incentivos adicionais para a manutenção do controlo, e que a distribuição de trabalhadores conjuntamente sob um mesmo tecto nas antigas fábricas, permitia a monitorização e a supervisão com maior eficiência.
Outra dimensão da vigilância foi explorada por Foucault, e prende-se essencialmente com uma viragem consolidada na Modernidade: dos métodos coercivos e técnicas de controlo social às tecnologias do poder que induziram a auto-disciplina por intermédio da vigilância. Para Foucault, o Panóptico, projecção de finais do século XVIII concebida por Jeremy Bentham, tornou-se no arquétipo das modernas tecnologias de vigilância.
É importante sublinhar, no entanto, que nenhum sistema de vigilância é totalmente operacional sem a cooperação dos sujeitos. Em termos ordinários, são as pessoas que despoletam as práticas de vigilância nas rotinas mundanas do quotidiano. Quando as cartas são distribuídas, quando se acede a sites, quando os números de telemóvel são disponibilizados, os dados são armazenados. Estes dados revelam a realização de transferências por exemplo, e mesmo a localização geográfica. E se as pessoas estão envolvidas na vigilância, por outro lado podem representar a obstrução da mesma prática.
References:
Dandeker, C. (1990) Surveillance Power and Modernity. Polity Press, Cambridge.