Culturalmente, a reflexão antropológica sempre partiu do homem como uma articulação entre um corpo e uma alma, de um vivente e de um logos, de um elemento natural (ou animal), e de um elemento sobrenatural, social ou divino. Seriam estas as categorias indissociáveis ao limite crítico que produz o homem: a humanidade e animalidade do homem conjugavam-se numa reciprocidade mais ou menos nivelada, e a lei e a moralidade eram entendidas com base nesta “natureza humana”.
Para Kant, a resposta à questão “o que é o homem?” definia-se pela moralidade, na medida em que a moralidade constitui uma série de ações praticadas conforme a autonomia da vontade, autonomia essa que consiste em escolher máximas da própria vontade, transformando-as em leis universais: a liberdade significa a propriedade da vontade. Retomando Aristóteles, esta seria a “boa vida”.
Atualmente, a questão filosófica original sobre a boa vida parece ter tomado um rumo novo, uma vez que as novas tecnologias sugerem uma nova narrativa, e esta narrativa deve ser urgente e radicalmente questionada, visto que os filósofos não devem deixar essa disputa para os biólogos e engenheiros intoxicados pela ficção científica. Esta questão será ilustrada com recurso a um entendimento do movimento denominado de Transhumanismo, para que se explorem as suas vantagens e se levantem algumas interrogações.
Transhumanismo: Antecedentes Culturais e Filosóficos
Na génese do conceito “transhumanismo”, está implicada a ideia da transcendência física da atual fase do homem por mediação tecnológica (Bostrom, 2005). Este é já um desejo humano tão arcaico como a própria espécie humana. Os fragmentos religiosos encontrados nos rituais de enterro funerários demonstram que o homem e a mulher pré-históricos se sentiam profundamente perturbados pela morte dos entes queridos, e apesar da crença na vida após a morte, tal crença não excluía a tentativa de prolongar a extensão da vida terrena.
No entanto, ultrapassar os limites que definem a natureza humana chegou a ser uma questão marcada pela ambivalência, pois os antigos sentiam espanto por tal ensejo, ao mesmo tempo que temiam um desfecho prometaico: Prometeu roubou o fogo a Zeus, melhorando a condição humana, mas por tal afronta foi condenado a ver o seu fígado ser devorado e regenerado para a eternidade.
O cristianismo medieval apresentava igualmente visões conflituosas sobre a demanda da vida eterna por parte dos alquimistas, que tentaram transmutar substâncias, criar homúnculos e inventar uma panaceia. Os escolásticos em causa viam a alquimia como um atentado a Deus, e alegaram que a prática envolvia a invocação de entidades diabólicas.
É precisamente Francis Bacon a personagem considerada como o “Padrinho” do movimento transhumano. Dos pilares filosóficos que ergue, descendeu o racionalismo empírico formulado no Novum Organum (1620). Os aforismos alcançam as centenas, mas essencialmente, a tese baconiana sintetiza-se deste modo: “A ideia central do pensamento e Bacon é que o homem pode dominar a Natureza e que o instrumento adequado para isso é a ciência.” (Martínez, Tomás Calo e Juan Manuel Navarro Cordón, 2014).
Esta meta seria possível se fossem erradicados os quatro ídolos que bloqueavam a mente humana: os ídolos da tribo, fundados na espécie humana, que privilegiavam os sentidos, os quais, segundo Bacon, espelhavam a natureza mas não o universo; os ídolos da caverna, erros que derivam das particularidades individuais, sejam estas consequências da educação ou dos hábitos individuais; ídolos da praça pública, que consistem nos erros gerados pelo discurso; ídolos do teatro, ou a aceitação acrítica dos postulados filosóficos antigos. Pela obliteração destes falsos apelos, seria possível acumular um género de conhecimento: o conhecimento universal. Todavia, paradoxalmente por força de uma perspetiva particular e de uma metodologia individualista.
De Bacon até ao Iluminismo a prerrogativa do controlo da natureza não perdeu o impulso, e criaram-se visões utópicas em discursos embelezados pela luz do progresso humano, da autonomia indelével da razão, o sapere aude de Kant. Em suma, elementos que serviriam como hino para o método positivista, o determinismo histórico, para a epistemologia unilinear ocidental, que não concede legitimidade à noção de que a ordem do mundo pode consistir na desordem.
Por volta do século XVIII e XIX, começam a surgir ideias de que o ser humano podem ser aprimorados com aplicação da ciência para seu proveito. Condorcet explorou esta tese: “Seria absurdo supor que o aperfeiçoamento da raça humana se pode estender até ao infinito? Que chegará uma fase em que a morte não será mais do que um acidente extraordinário, e que o intervalo que medeia o nascimento e a decadência do corpo será indefinido? Com toda a certeza o homem não será imortal, mas talvez a sua vida se prolongue até ao ponto em que vida acabe por se tornar num fardo.”
Um equívoco que tende a ser cometido, é que Friedrich Nietzsche teria sido uma influência categórica neste movimento, dada a sua teoria sobre o “Ubermensch” (Super-Homem). No entanto, Nietzsche não tinha em mente a superação tecnológica, mas o crescimento pessoal e individual. A sua filosofia é uma filosofia da superação que tem como núcleo a autonomia do ente e a potência do pensamento.
Transhumanismo Contemporâneo
Max More (2013: 4), figura inseparável deste movimento, define o transhumanismo como uma filosofia da vida que recusa justificar o ser com argumentos religiosos, enfatizando a abordagem ética informada pela razão, ciência, progresso e o valor da existência, que compete ao indivíduo perseguir. Por outras palavras, a noção de ser humano num futuro transhumanista reflete um ser epistémico ideal, que ao rejeitar a dimensão “irracional do racional”, torna o argumento de Max More contraditório, uma vez que subentende uma armadilha: rejeitando a fé dogmática, acaba por justificar cegamente a sua própria doutrina. Analogamente à critica de Stanley Tambiah (1990) ao estatuto da ciência, as premissas transhumanistas acabam por funcionar como um sistema de crenças sem que haja verificação das verdades objetivas que caracterizam estas.
Estas paisagens transhumanistas foram fundidas no princípio da “extropia”, metáfora antitética de entropia, que defende os seguintes ideiais: progresso perpétuo; autotransformação; postura otimista para com a inteligência artificial; sociedade aberta; pensamento racional. Mas qual a substância do progresso perpétuo? Segundo Max More, o progresso perpétuo é uma forte declaração do compromisso transhumanista em exigir mais inteligência, sabedoria, ampliar o tempo de vida, e remover as barreiras políticas, culturais, biológicas e psicológicas ao desenvolvimento contínuo.
Traçam-se os paralelos com a ideia Kantiana de que a humanidade só pode ser mais livre se tiver à sua disposição todos os conhecimentos e ciências, mas sempre a partir de uma perspetiva racional. Mas será este um bem ao qual toda a humanidade almeja? Em primeiro lugar, será a experiência empírica um fim universalmente desejado? Em segundo lugar, e percebendo a nobreza da intenção de o transhumanismo colmatar os limites biológicos e psicológicos do ser humano -unindo conhecimento e tecnologias para se multiplicarem os limites do corpo e da cognição -, não se sabem o que são os limites culturais e políticos do ponto e vista do movimento.
Incomensurabilidade Artificial
Já há algum tempo, Martin Heidegger tinha apresentado a hipótese de que a tecnologia não é neutra, que techne deriva de episteme, que significa o conhecimento da realidade. E contudo, como se fosse preciso dizê-lo, a evolução das tecnologias é indissociável das tragédias que preenchem a história da humanidade. A ciência como conhecimento ao serviço do poder, já ensinou demasiadas lições: quer o tenha demonstrado na construção de melhores embarcações, de bússolas, de mapas cartográficos, que no decorrer do século XVII forem meios indispensáveis ao tráfico de negros para a América; quer o tenha demonstrado pela bomba de fissão de urânio lançada sobre Nagasaki, ou pela bomba de fissão de plutónio que devastou Hiroshima.
O transhumanismo requer a maior preocupação possível, porque nesse dito estágio superior da humanidade, pode ser gerado um novo conflito, novamente entre mentalidades. Será possível, a título de exemplo, surja um Lévy-Bruhl transhumanista, pronto para conceber uma distinção não entre mentalidades lógicas e pré-lógicas, mas sim entre o cérebro pré-artificial e o processador artificial? A partir de um enredo destes, seria verosímil que se voltassem a conceber teoria da feição o evolucionismo social, porque em última análise, o evolucionismo também é um fundamento nuclear no pensamento transhumanista. Porém, no limite, essa questão pode nem ser colocada, porque uma inteligência artificial autónoma poderia dar começo ao processo de extinção em massa da espécie humana.
References:
Bostrom, Nick (2005),“A History of Transhumanist Tought”, Journal of Evolution and Technology, (Online), 14 (1).
Disponível em: http://www.nickbostrom.com/papers/history.pdf
Martínez, Tomás Calvo e Juan Manuel Navarro Cordón (2014), História da Filosofia, Lisboa, Edições 70; 227- 331
Tambiah, Stanley (1990), Magic, Science, Religion and the Scope of Rationality, Cambridge, Cambridge University Press; 1-41
http://media.johnwiley.com.au/product_data/excerpt/99/11183342/1118334299-106.pdf , acedido a 27 de Abril