Flânerie

George Simmel e Walter Benjamin abordaram diferentemente a noção de individualidade. O locus para ambas as construções parte da análise da cidade moderna, cristalizada num sinuoso processo de massificação e racionalismo económico. É à luz do cruzamento das premissas dos dois autores, que visamos construir este texto.

Palavras-Chave: George Simmel; Walter Benjamin; Cidade; Individualidade; Flâneur

Introdução

“As Grandes Cidades e a Vida do Espírito”, texto proferido por George Simmel numa palestra em 1903, decorrido mais de um século, constitui um marco histórico para o posterior desenvolvimento do pensamento sociológico, e representa o mesozoico da Antropologia Urbana. Ainda que de cariz indubitavelmente teórico e abstracto, muitas das ideias do autor revelaram-se resilientes consoante o trabalho do tempo, nomeadamente a noção de individualidade nas grandes cidades que começaram a arquitecturar o espaço no século XIX. Por seu turno, Walter Benjamin (Ortiz, 2000) incide na análise do mesmo comportamento, mas enfatizando outro palco, a Paris massificada de Charles Baudelaire, segundo a óptica do flâneur, e tangendo conclusões, que julgamos distintas da proposta de Simmel. Subentendido na retórica de ambos, está o duelo dialéctico entre objectividade espiritual e subjectividade espiritual, o que nos remete para a tentativa do indivíduo reclamar a liberdade perante um ambiente citadino opressor, fruto do processo de racionalização económica da sociedade urbana.

Prolegómenos da Individualidade

Em Simmel, a raiz genealógica que conduzirá o seu pensamento aos meandros das grandes cidades, reside num pressuposto duplo. Isto é, a partir da análise histórica das propriedades dos pequenos e grandes grupos, o autor constrói a chave hermenêutica para expor os processos da corrosão individual em contexto urbano. O quantum, na perspectiva do sociólogo, para se proceder ao exame da agregação ou fragmentação dos grupos, é a categoria quantidade. Isto é, a autonomia de um pequeno grupo, é cada vez mais limitada de acordo com o crescimento populacional. As condições necessárias para a sua constância identitária, pressupunham uma “forma pura” como grupo, uma vez que não incidiam no desenvolvimento de órgãos de manutenção, em contraponto aos grandes grupos, pois “as necessidades e pontos de vista individuais são diretamente efetivos, são objeto de imediata consideração.” (Filho, 1983: 99)

Em primeiro lugar, o autor ilustra as condições necessárias à preservação dos pequenos grupos, como as seitas religiosas, ou as pequenas aristocracias que proliferaram pelas cidades gregas e italianas. Segundo Simmel, a configuração sociológica dos pequenos grupos, fragilizava-os com uma tremenda frequência, pois estes, organizados de forma centrípeta, usavam todo o seu potencial para se afirmarem socialmente, o que é dizer que se fosse necessário, tornavam-se, no caso das aristocracias, grupos fechados para preservarem a identidade face ao crescimento populacional. Era deste modo que mantinham a sua “individualidade”. Mas no interior dos grupos sociais, a autonomia estava distante da mobilidade que será tornada possível na cidade moderna. Como nos informa Renato Ortiz (2000: 20), “antes da Revolução Industrial, das transformações políticas, e do Estado-nação, cada país era constituído por uma série heterogênea de regiões, de universos não integrados numa mesma totalidade.”

Em segundo lugar, contrariamente ao pequeno grupo, o grupo em massa está sentenciado à patologia homogeneizante. Este fenómeno representa o meio através do qual um grande número de indivíduos é sociabilizado pela ideologia estruturada no plano político. Para Walter Benjamin (Benjamin in Ortiz, 2000: 19), a massificação “suprime portanto todo sinal de singularidade: seu último asilo é no meio do bando”. Significa isto, que os sentimentos de comunidade moral que Simmel identifica nos pequenos grupos, desvanecem-se frente à lógica evolutiva dos grandes grupos, que condiciona a margem para actos humanos como a coesão imediata e pessoal. (Filho, 1983: 97-98)

Ambas as formas sociais explicitam claramente que, quer a unidade plural (grupo), quer a unidade singular (individual), em prol da sua afirmação, digladiam-se em relações sociais conflituosas:

“O indivíduo não alcança a unidade de sua personalidade exclusivamente através de uma harmonização exaustiva – segundo normas lógicas, objetivas, religiosas ou éticas – dos conteúdos de sua personalidade. A contradição e o conflito, ao contrário, não só precedem esta unidade como operam em cada momento de sua existência.” (ibidem: 123-124)

Por outros termos, a vida individual enfrenta as incertezas das formas sociais, numa relação que por ser dialéctica, implica uma hierarquia de poderes. É justamente com esta imagem em mente, o conflito enquanto facto social, que procederemos à análise da individualidade, cruzando as premissas de Simmel e Benjamin.

Grandes Cidades e Individualidade

A cidade, do modo como é teorizada por Simmel, não deixa de ser determinado pela sensibilidade do autor para com o estar no mundo. (Ortiz, 2000) Nas grandes cidades, o imperativo categórico é a “intensificação da vida nervosa” (Simmel, 2005 [1903]: 577), fundamento suportado pelo conjunto de signos evanescentes, talvez a “iluminação a gás”, o “sistema ferroviário”, as “passagens”, a “electricidade”, a “fotografia”, que Walter Benjamin encontrou na Paris de Charles Baudelaire, o “palco no qual se encenaria o drama da modernidade”. (Ortiz, 2000: 13-14)

O espaço urbano retrata aquilo que, segundo Weber (Spencer, 1977), foi peculiar no ocidente: o capitalismo racional. Como contraponto à cidade pequena, é orquestrada pelo ritmo furioso da economia monetária. O habitante coordena a sua vida, não por intermédio do ânimo, como o habitante da cidade pequena, mas força do entendimento. Entendimento está para objectividade, assim como subjectividade está para ânimo. Na primeira característica o indivíduo é quantificado, é número, ao passo que no segundo traço, a sua individualidade orienta o gesto. (Simmel, 2005 [1903]: 579)

 Meditando sobre este cenário, somos induzidos a comparar a narrativa de Simmel com aquela que foi a perspectiva durkheimiana, segundo a qual, a sociedade é uma coisa em si, e determina a consciência colectiva. Porém, esse é um erro em que uma leitura mais desinteressada cai. Apesar da sociedade urbana encarnar na sua “essência” o ideal do cálculo, nela, o detalhe mais exterior do indivíduo permite o acesso à “profundidade da alma”. Cabe ao indivíduo, definir as linhas mestras da sua singularidade, quer dizer, as decisões peremptórias “sobre o sentido e o estilo de vida.” Daí que impessoalidade e pessoalidade, andem par a par. (ibidem: 580-581)

Nos indivíduos das grandes cidades, essa resposta consistirá no carácter blasé, ou numa certa dose de reserva pessoal. Neste último aspecto, sobrevoa o tropo do conflito por nós já sublinhado, pois a reserva pessoal não consiste meramente em indiferença, mas sim numa “leve aversão” que “poderia imediatamente rebentar em ódio e luta.” (ibidem: 583). Não fosse esse mecanismo, e o estilo de vida urbano seria irrealizável. Julgamos que esta passagem de Simmel é de extrema importância, porque esse modo de dissociação, “é na verdade apenas uma de suas formas elementares de socialização.” (ibidem) Se já mencionámos que a “essência” urbana baseia-se no cálculo económico, a socialização é também, “uma das grandes tendências de desenvolvimento da vida social.” (ibidem) Ao passo que o racionalismo económico parece insinuar-se como um colete-de-forças, a socialização incorpora em si, vestígios de formas de grupos de estádios iniciais da sociedade. O espaço restrito de jogo que pertence ao habitante da pequena cidade, pertence ao habitante da grande cidade igualmente. Deste modo, ele tem actos interessados, e num sentido “refinado e espiritualizado”, é “livre”. (ibidem: 585)

Mas o custo da liberdade é o desenraizamento que Walter Benjamin anotou. (Ortiz, 2000: 18) Contudo, o filósofo proporciona uma imagem da liberdade individual, que se distingue do pessimismo simmeliano encarnado no espírito blasé. O flâneur na Paris do século XIX, também testemunha da consolidação lógica do capitalismo, que possui seu paralelo na consagração dos indivíduos na categoria plural de massa. Com efeito:

“A circulação pela cidade tornou-se certamente mais fácil e mais rápida, as ruas e o sistema viário lhe permitem locomover-se sem maiores problemas, mas as imposições externas são também mais coercitivas, cada vez mais ameaçam sua liberdade individual. (ibidem: 19)

Se Simmel imputa um menor grau de agência ao indivíduo, Walter Benjamin apresenta-nos uma figura mais independente não só a nível espacial, mas também a nível intelectual. O flâneur “olha e descreve”, qualidades ironicamente reconhecidas por Simmel em referência ao indivíduo na grande metrópole. Diverge a capacidade de resposta do flâneur, porque a sua perspectiva é muito mais rica, quase um modo de olhar antropológico, que é também uma forma de arte (ibidem: 23) porque pretende ver para lá da aparência, descobrir o inesperado: “A flânerie pressupõe portanto a ideia de distanciamento.” Implicada nesta postura, está a marginalidade da figura analogamente à personagem do boémio, porque tanto um como o outro, escolhem actuar à margem da sociedade. (ibidem: 21-23) Em Simmel, os efeitos das cidades grandes parecem ser os mesmos para todos os indivíduos. Isto porque estes retribuem com recurso à apatia e reserva. Pelo caminho, fica a percepção atenta, que é a ferramenta que possibilita o indivíduo a subverter as tendências dominantes subjacentes à especificidade da sociedade urbana:

“ O desenvolvimento da cultura moderna caracteriza-se pela preponderância daquilo que se pode dominar espírito objetivo sobre o espírito subjetivo, isto é, tanto na linguagem como no direito, tanto na técnica de produção como na arte, tanto na ciência como nos objetos do âmbito doméstico, encarna-se uma soma de espírito, cujo crescimento diário é acompanhado à distância cada vez maior e de modo muito incompleto pelo desenvolvimento espiritual dos sujeitos.” (Simmel, 2005 [1903] 588)

Atravessando o pequeno grupo, o grande grupo, até à massificação populacional, parece que o indivíduo desiste de medir forças com uma conjuntura estrutural desfavorável regulada pela economia desenfreada. Quer dizer, preserva a simpatia ou a aversão face a outros indivíduos, ou adapta-se à complexa divisão do trabalho à luz de uma diferenciação qualitativa. Mas o princípio em si, é paupérrimo, e aproxima-se mais do conformismo, do individualismo inconsciente porque formatado pela cultura moderna objectiva, em suma, da impossibilidade de outro cenário, ao passo que em Benjamin, o flâneur envolve-se numa relação mais dinâmica com a cidade, pois o seu individualismo é consciente, “como se o fato de virar à direita ou à esquerda constituísse em si um ato poético”. (Benjamin in Ortiz, 2000: 23)

 

Conclusão

No decorrer deste ensaio, cruzámos duas leituras sobre as consequências das grandes cidades na vida do espírito. Se privilegiámos a óptica benjaminiana em detrimento da visão de Simmel, fizémo-lo por considerações “empíricas”, pois Benjamin oferece-nos um caso concreto, ao passo que em Simmel, somos levados a questionar que “Grandes Cidades” são essas, e se as premissas são válidas para uma generalização de cunho ecuménico. Claro que com isso, não queremos recusar as deduções de Simmel, ou afirmar que este está errado. Quanto mais, a postura de um autor e do outro, alerta-nos para a tentação fácil da falácia de julgarmos a parte pelo todo, isto é, considerar que um fenómeno urbano de considerável significância, como a racionalização da sociedade, dita atitudes semelhantes em todo o contexto urbano. Não é verdade, pois empregam-se estratégias diferentes para se lidar com uma nova configuração espacial complexa. Em adição, o interstício interpretativo dos dois autores, só confirma este ideal por nós defendido. A cidade é um espaço de possibilidades, e só mesmo Simmel para o consolidar à luz das suas palavras: “[…] as cidades grandes obtêm um lugar absolutamente único, prenhe de significações ilimitadas, no desenvolvimento da existência anímica; […]” (Simmel, 2005 [1903] 589) É justamente este carácter indefinido que inspirará o desenvolvimento da etnografia das cidades em transição, sondando os bastidores do palco principal, de modo a surpreender-nos com perspectivas mais férteis. Tal ponto de vista cartografará a cidade, entre tantas outras latitudes, como um mosaico cultural, o que no fim de contas, é o complexo resultado da sua própria complexidade.

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