Não houve nenhum campo de estudos na antropologia social tão dissonante quanto o estudo do parentesco. Os motivos são essencialmente dois: primeiro, foi decididamente o tópico que mais unificou os seus praticantes, ainda que com visões díspares, em torno de um mesmo campo de curiosidade por uma margem de tempo significante; segundo, tornou-se na temática que mais pesadelos suscitou aos principiantes em antropologia, devido ao seu carácter algébrico e incrivelmente abstrato. Por essas razões e toda uma história impossível de simplificar, o estudo do parentesco foi praticamente votado ao esquecimento ou aos desígnios intelectuais de uma minoria. Sem embargo, esta matéria assinou uma época na história da antropologia, e o seu estatuto é análogo ao que a lógica foi para a filosofia e o nu para a arte. (Bernardi: 2007)
- Génese
A origem da sexualidade da humanidade ainda se encontra por desvendar. Porém, é óbvio de que através dela, estabeleceram-se determinadas regras sociais para o seu controlo, pois a cooperação entre machos e fêmeas não seria tangível sem essa codificação que restringe a prática sexual. Portanto, onde acaba o determinismo das nossas hormonas e o papel da cultura começa, é onde o parentesco revela o seu brilho. (Batalha: 2004) Que pressupõe o conceito de parentesco? Será um fenómeno biológico consumado cuja manifestação no espaço e no tempo foi sempre igual? Ou não será antes um facto heterodoxo, uma vez que o conceito oculta todo um conjunto de práticas sociais que variam de sociedade para sociedade? Na antropologia social optou-se pela segunda definição, e essa decisão é tributária de uma fase liminar no corpus histórico da disciplina: o estudo de Lewis Henry Morgan entre os índios Iroqueses. A espantosa descoberta de que entre este grupo, determinado sujeito herdava a propriedade por via materna, ou que em relação a Ego o irmão do pai era chamado de pai ou a irmã da mãe era chamada de mãe, auxiliou a desnaturalizar o parentesco, sujeitando-o a um julgamento crítico, e a uma bipartição que dividia o parentesco de acordo com um princípio descritivo ou classificatório. Entendido descritivamente, cada termo num esquema de parentesco (pai ou mãe por exemplo) restringe-se ao seu sentido primário e nunca a colaterais; classificatoriamente, o parentesco consiste na redução da consanguinidade a um conjunto de classes através de um processo aleatório de generalizações. (Trautmann: 3-4, 7)
- Três Tipos de Parentesco
Como em muitas sociedades humanas o terreno social é organizado diversamente do que é a convenção no ocidente, convém especificar os três pilares basilares do parentesco. Eis os três tipos.
Consanguinidade: é o princípio biológico por excelência, que se manifesta na descendência genealógica.
Afinidade: ordem especificamente social, e que sucede-se por intermédio de codificações sociais ou por leis. Os afins são os dois esposos, cujos filhos são consanguíneos de ambos os genitores.
Relacional: neste caso, em relação ao Ego, distinguem-se na sua genealogia, os consanguíneos e afins, cada qual com um conjunto de direitos e deveres específicos quanto a Ego.
Dado que o casamento não tem como objetivos a simples relação sexual entre dois indivíduos ou a procriação, convém explanar como é que o casamento é condicionado social e culturalmente (Lévi-Strauss: 50) mas primeiro enunciar-se-ão o conjunto de símbolos que os antropólogos sociais utilizam no âmbito dos estudos do parentesco, se bem, que no presente estado da antropologia, seja raro a produção de estudos sobre parentesco com recurso a esta panóplia de símbolos.
- Os Símbolos
A nomenclatura utilizada nos diagramas de parentesco corresponde às letras do alfabeto, mas em expressão inglesa, pela acessibilidade que lhe é inerente, pelo que a disposição é a seguinte:
A justaposição das letras indica as diversas relações individuas de parentesco possíveis. Por exempo:
FF = Father’s Father (pai do pai, avô paterno)
MM = Mother’s Mother (mãe da mãe, avó materna)
Terminologias mais extensas:
MMBDD = Mother’s Mother Brother Daughter’s Daughter (Filha da Filha do Irmão da Avó Materna)
- Dois exemplos de sistemas Matrimoniais
Sistema Matrimonial Directo ou Simétrico – Paridade entre os grupos, quem dá uma mulher recebe uma mulher:
A: A -» B -» A (Sistema “Elementar”)
Neste caso de troca restrita, o casamento consolida-se entre primos cruzados, pelo que Ego deve desposar a filha do tio materno (MBD) ou a filha da tia paterna (FZD). Por outras palavras, há um sistema de atitudes neste esquema que visa manter a coesão entre o grupo A e o grupo B. Outro dado curioso é que, neste esquema de três gerações, os netos casados têm em comum os avós, mas alternadamente: os avós paternos de ego são também avós maternos da sua esposa, e os avós paternos da irmã de ego são avós maternos do seu marido. (Bernardi: 315) Apesar de se definir no sistema kariera este casamento como a união entre primos cruzados, as primas de ego são as suas irmãs “classificatórias”.
Sistema Matrimonial Indirecto ou Assimétrico – Quem dá uma mulher não recebe a restituição imediatamente do mesmo grupo, mas de um terceiro:
A: -A-» B-» C-» A (Sistema “Complexo”)
O exemplo em causa evidencia não a presença de dois grupos, mas sim de três: A, B e C. Consequentemente, o grau de parentesco das mulheres que são oferecidas por um grupo ao outro grupo, deverá, em princípio, ser mais extenso do que no caso de trocas diretas.
Com estes dois casos compreende-se que as relações de parentesco podem adquirir formatos totalmente contrários ao que é a norma ocidental, onde cada sujeito escolhe o seu parceiro, desde que não pertença ao círculo dos parentes chegados. Por outro lado, tanto numa perspectiva comparativa como numa perspectiva local, a tradicional noção de família nuclear revela-se em apuros, pois é uma entre inúmeras formas, pelo que o conceito implica famílias constituídas ora por consanguinidade ora por afinidade. Portanto, o casamento entre primos cruzados ou duas mulheres são, por exemplo, possibilidades igualmente legítimas se o contexto de análise for respeitado. Breve referência ainda às sociedades onde a poligamia é praticada, como entre os Kapauku da Nova Guiné, onde o prestígio de um homem se mede pela quantidade de mulheres que possuiu; às sociedades onde a poliandria (uma mulher com vários parceiros masculinos) é consumada, como entre os esquimós Inuit, entre os habitantes das ilhas Marquesas, ou em alguns grupos do Tibete.
References:
- Barnard, Alan e Jonathan Spencer (2002), Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology, London, Routledge
- Bernardi, Bernardo (2007), Introdução aos Estudos Etno-Antropológicos, Lisboa, Edições 70
- Lévi-Strauss, C. (1958), Anthropologie Structurale, Paris, Librairie Plon
- Trautmann, Thomas R. (1987), Lewis Henry Morgan and the Invention of Kinship, California, University of California Press