Introdução
A Doença de Ménière (DM) é caracterizada por um aumento do volume de endolinfa no labirinto membranoso do ouvido interno, possivelmente associado a um distúrbio na homeostase dos íons que compõem esse fluido. Consequentemente, podem manifestar-se sintomas como vertigens, tinnitus (zumbido no ouvido) e perda auditiva parcial (hipoacusia) de origem neurossensorial.
O nome dessa condição é em homenagem ao médico francês Prospere Ménière, que primeiramente propôs a ideia de que a causa deste conjunto de sintomas poderia ser procedente do ouvido interno.
A incidência desta doença é de 10 a 150 pessoas a cada 100 mil, podendo esta medida variar a depender das características da população estudada. Além disso, sabe-se que a incidência é maior no sexo feminino do que no masculino, em uma proporção de 1,89:1, e que se manifesta principalmente entre a terceira e a quinta décadas de vida – embora possa ocorrer em qualquer idade – sendo que de 10 a 50% dos pacientes referem acometimento bilateral (nos dois ouvidos). Na infância está geralmente associada a alguma malformação congênita do ouvido interno.
Breve anatomia do ouvido
O ouvido humano é anatomicamente estudado em três diferentes segmentos: o ouvido externo, o ouvido médio e o ouvido interno. O primeiro compreende o pavilhão auricular (externamente na cabeça e responsável por captar os estímulos sonoros do ambiente) e o meato acústico externo (que irá conduzir as ondas sonoras até o tímpano). O segundo segmento é o espaço localizado entre o tímpano e a cóclea – é a denominada caixa timpânica – apresentando em seu interior três ossículos (martelo, bigorna e estribo) que, através de vibrações recebidas e transmitidas pelo tímpano, conduzirão o estímulo até o ouvido interno; o ouvido médio também se comunica com a nasofaringe por meio da tuba auditiva (ou trompa de Eustáquio). O ouvido interno, também conhecido por labirinto, está localizado dentro do crânio, e é composto pela cóclea e pelo aparelho vestibular (formado pelos canais semicirculares). Entre a cóclea e o aparelho vestibular encontra-se o vestíbulo. O nervo vestibulococlear (par craniano VIII) é responsável por levar os estímulo produzidos por essas duas estruturas até o córtex cerebral, onde será, então, interpretado. Todos os componentes das vias da audição, em condições normais, estão presentes bilateralmente na cabeça humana. A Figura 1 abaixo traz uma representação esquemática do ouvido; a Figura 2 mostra a localização do ouvido interno no interior do crânio.
Figura 1. Meato acústico externo; cavidade do tímpano, e cóclea. Corte frontal. Vista posterior (à direita)
Figura 2. Orelha interna e nervo vestibulococlear (VIII). Moldes em suas posições naturais projetados na parte petrosa do osso temporal. Vista superior
O labirinto é composto pelo labirinto ósseo, que é fixado na parte petrosa do osso temporal, e, em seu interior, o labirinto membranoso. Este, por sua vez, é preenchido por um líquido denominado endolinfa; o espaço entre os labirintos membranoso e ósseo (espaço periótico) é ainda preenchido por um outro líquido, a perilinfa. O labirinto ósseo é divido em cóclea, vestíbulo ósseo e canais semicirculares, enquanto no labirinto membranoso encontram-se, respectivamente, o ducto coclear, o vestíbulo membranoso e os ductos semicirculares. O epitélio que reveste internamente o labirinto adquire características diferentes em cada segmento, que estão relacionadas às funções sensoriais desempenhadas pelos mesmos. Na cóclea, o epitélio de revestimento interno é denominado órgão de Corti, apresentando células ciliadas altamente diferenciadas e especializadas, que fazem conexão com o ramo coclear do nervo vestibulococlear. O vestíbulo membranoso é revestido internamente pela mácula, cujas células ciliadas fazem conexão com o ramo vestibular do nervo vestibulococlear; além disso, estas células estão em contato com os otólitos, sais de carbonato de cálcio que ajudam na percepção do equilíbrio. Finalmente, os ductos semicirculares apresentam as cristas ampulares, constituídas também por células epiteliais especializadas na função vestibular do equilíbrio, e que também se conectam com o ramo vestibular. A Figura 3 abaixo apresenta, em aumento, o labirinto ósseo, à esquerda, e a visão do seu interior, onde se encontra o labirinto membranoso, à direita.
Figura 3. À esquerda, vista ântero-lateral do labirinto ósseo e, à direita, vista ântero-lateral do interior do labirinto ósseo
Etiologia e Fisiopatologia
A Doença de Ménière ainda é pouco compreendida, sendo atualmente classificada como idiopática, ou seja, de causa desconhecida. No entanto, a mesma síndrome (conjunto de sinais e sintomas) pode se manifestar quando da presença de outras condições patológicas, que serão apresentadas no tópico Diagnóstico diferencial. Nestes casos, porém, não se trata da Doença de Ménière.
Diversas são as teorias propostas para justificar o fenômeno do aumento do volume da endolinfa no labirinto – condição denominada hidropsia endolinfática – abrangendo causas virais e vasculares, predisposição genética, fenômeno autoimune, entre outros. O que se sabe de fato sobre a fisiopatologia da DM é que o aumento do volume do líquido leva a uma distorção e distensão da membrana do labirinto, o que provavelmente está associado ao aparecimento dos sintomas.
Histopatologicamente, a doença é caracterizada por apresentar dano ao neuroepitélio de revestimento interno, com a perda de células ciliares e redução da espessura da membrana basal do labirinto membranoso, bem como danos à microvascularização envolvente.
O diagnóstico definitivo da existência de hidropsia endolinfática é feito post-mortem, por meio de um estudo histopatológico do osso temporal; no entanto, não é raro que se encontrem achados associados às hidropsia em indivíduos que nunca tiveram história de DM em vida.
Sinais e sintomas
A tríade clássica de sintomas que caracteriza a Doença de Ménière é composta por crises episódicas de vertigem, hipoacusia neurossensorial e tinnitus. A vertigem é definida como uma sensação de rotação do ambiente ou do próprio paciente, que pode estar associada a náusea e vômitos e ter uma duração de 20 minutos a 24 horas. Já a perda auditiva, de caráter neurossensorial (ou seja, relacionado à recepção e transmissão dos estímulos pela cóclea e nervo vestibulococlear), é inicialmente parcial e restrita aos sons de baixa frequência. No entanto, com o avançar da doença não tratada ou refratária ao tratamento, esta perda pode abranger todas as frequências de som e causar perda total da audição no ouvido afetado, em um período de cerca de dez anos. O tinnitus consiste em um zumbido escutado pelo paciente, que pode se manifestar como diferentes sons, como um apito contínuo ou o barulho de uma concha. Outro sintoma não raro de aparecer é a sensação de plenitude auricular, ou seja, a impressão de ter o ouvido entupido ou uma pressão em seu interior.
A manifestação dos sintomas varia em cada paciente. Enquanto uns apresentam principalmente manifestações vestibulares (com vertigens frequentes e intensas), outros apresentam majoritariamente manifestações cocleares (relacionados à audição), e há ainda aqueles que apresentam a sintomatologia de todo o labirinto, em que sintomas vestibulares e sintomas cocleares se apresentam na mesma intensidade.
Diagnóstico diferencial
Diversas outras doenças podem manifestar sintomas que se enquadram no espectro sindrômico da Doença de Ménière, sendo, pois, de extrema importância confirmar ou afastar essas possibilidades antes de se proceder ao diagnóstico e tratamento desta. Algumas delas são: schwannoma vestibular (neuroma acústico), esclerose múltipla, ataque isquêmico transitório, otosífilis, trauma cirúrgico, doença do ouvido interno imunomediada, doença de Lyme, fístula perilinfática, tumores do osso temporal, síndrome do canal semicircular superior, diabetes, doenças da tireoide, anemias severas e Síndrome de Cogan – entre outras. É importante também avaliar a presença de migrânea (“enxaqueca”) devido à possibilidade de ocorrência concomitante à Doença de Ménière e mesmo para afastar a hipótese de vertigem migranosa, que consiste em outra doença.
Diagnóstico
O diagnóstico presuntivo da Doença de Ménière é feito após proceder-se à avaliação clínica e complementar (por meio de exames) do paciente, uma vez que não existe um teste diagnóstico específico, sendo o diagnóstico definitivo feito post-mortem. A resposta ao tratamento proposto também ajuda no estabelecimento do diagnóstico presuntivo. Clinicamente o paciente poderá se apresentar com um quadro sintomatológico constituído por poucos sintomas ou poderá manifestar um quadro rico, de sintomas variados e intensos. A Academia Americana de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço (AAO-HNS) propõe os seguintes critérios diagnósticos para a Doença de Ménière:
- Dois episódios espontâneos de vertigem rotacional, de duração mínima de 20 minutos;
- Confirmação de redução auditiva sensorial pela audiometria; e
- Tinnitus e/ou sensação de plenitude auricular (“ouvido entupido”).
A audiometria deve ser realizada em todo paciente com suspeita clínica de DM. O exame pode trazer como resultado uma perda neurossensorial para sons de baixa frequência (e, em alguns casos, também perdas para altas frequências, estando as frequências intermédias preservadas). Outros exames que podem ser feitos incluem o teste vestibular, análises de sangue e exames imagiológicos. O primeiro constitui-se na verdade de um conjunto de três testes específicos que são realizados com o paciente com o objetivo de avaliar a função vestibular. As análises de sangue visam pesquisar a existência de alguma comorbilidade que possa estar levando às manifestações sindrômicas, de modo a se poder excluir outras doenças antes de se diagnosticar a DM; são esta comorbilidades principalmente: hiper/hipotireoidismo, diabetes, sífilis/neurossífilis, anemias. Dos métodos imagiológicos disponíveis, o que é empregado no estudo da doença é a ressonância nuclear magnética (RNM). Muito embora a DM não apresente achados específicos à RNM, este exame é utilizado para excluir lesões do sistema nervoso central que possam se manifestar através de uma síndrome semelhante à da DM, como é o caso de tumores, aneurismas, estenoses do sistema circulatório e achados relativos a esclerose múltipla por exemplo (todas estas se apresentando, portanto, como diagnósticos diferenciais).
Tratamento
Os principais objetivos que visam a ser alcançados com o tratamento estão relacionados principalmente ao alívio dos sintomas manifestados pelo paciente, com destaque para redução da frequência e intensidade dos ataques de vertigem, alívio do tinnitus, prevenção da perda auditiva e da progressão da doença.
O primeiro passo no tratamento da Doença de Ménière é uma conduta conservadora, a qual deverá adotar medidas não farmacológicas, como redução na ingestão de sal (dieta hipossódica de até 2 g/dia), cafeína, álcool e tabaco; melhor higiene do sono e prevenção de situações de estresse – bem como medidas educacionais (explicar ao paciente o que é a doença, suas repercussões e as expectativas do tratamento). A instituição de terapia medicamentosa é o passo seguinte, quando então poderá iniciar-se a administração de um diurético; se, no entanto, o controle dos sintomas ainda não for efetivo, pode-se associar a beta-histina (ação vasodilatadora; disponível na Europa). A administração destes medicamentos tem por objetivo reduzir a hidropsia endolinfática e aumentar a vascularização no labirinto. O uso de corticosteróide sistêmico também pode ser considerado, uma vez que há a possibilidade de uma causa autoimune. Em torno de 90% dos pacientes mantidos em terapia medicamentosa são capazes de realizar normalmente as suas atividades diárias e de 90 a 95% em tratamento apresentam controle dos ataques de vertigem – embora o tratamento não seja tão eficaz no combate ao declínio auditivo. Existem também terapias específicas para reabilitação vestibular que podem ser utilizadas para os pacientes com DM.
Havendo persistência dos sintomas e/ou progressão da doença (10% dos pacientes), pode-se valer também do dispositivo de Meniett (que cria uma pressão positiva no ouvido médio, ocasionando uma melhor circulação do fluido endolinfático no ouvido interno) ou de procedimentos cirúrgicos do saco endolinfático (descompressão e/ou shunt, havendo, ainda, a possibilidade de realizar sua extração). O controle dos sintomas vertiginosos intensos e refratários aos tratamentos anteriores pode ainda ser tratado com terapia ablativa, como a aplicação de gentamicina intratimpânica (a gentamicina é tóxica ao neuroepitélio do ouvido interno, destruindo-o). Em raros casos, são considerados procedimentos como secção do nervo vestibulococlear ou labirintectomia (retirada cirúrgica do labirinto). O uso de medicamentos benzodiazepínicos (como o lorazepam), anticolinérgicos (como a escopolamina) e anti-heméticos nesta doença está reservado ao controle de sintomas agudos em episódios de vertigem – reduzir atividade vestibular (benzodiazepínicos e anticolinérgicos) e inibir as náuseas e vômitos (anti-heméticos).
Referências Bibliográficas
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