“Uma vez no Kula, para sempre no Kula”
É na obra de Bronislaw Malinowski, Os Argonautas do Pacífico Ocidental, que a instituição do Kula é analisada pormenorizadamente. O Kula, nas palavras de Marcel Mauss, é um sistema solene e vasto de prestações e contraprestações que engloba a plenitude da vida económica e civil das ilhas Trobriand. (Mauss, 2003: 223) É também minucioso uma vez que as datas são fixadas, os preliminares acordados, as expedições combinadas e a organização social determinada. (Malinowski, 1932: 101) Neste circuito de trocas, permutam-se duas categorias de objetos: na direção dos ponteiros de um relógio, movem-se os soulava, colares de conchas vermelhas; na direção contra relógio, movem-se os mwali, pulseiras de conchas brancas. Deste modo, cada um destes objetos, circulando em rumos opostos, encontram-se com classe contrária de objetos. Mas o Kula é mais do que um simples mecanismo comercial visto que na sua arquitectura se evidenciam o mito, a lei tradicional, e os ritos mágicos. (Malinowski, op.cit.: 102) Por conseguinte, cada momento da transação é regido por um conjunto de regras tradicionais entre outras convenções e cerimónias públicas, e enquanto mecanismo económico de transação, o Kula é baseado numa forma específica de crédito que implica um alto grau de confiança mútua e honra comercial, e que não é feito sobre o imperativo da necessidade uma vez que os objetos trocados possuem valor estético e não valor prático. (ibid.: 85-86) Para além da sua beleza, os objetos constituem-se ainda de um nome, de uma personalidade, uma história, e até mesmo um romance. (Mauss, op.cit.: 219)
Cada participante do Kula, recebe um objeto, seja um mwali ou um soulava, que deterár durante uma franja temporal que corresponde, até o objeto completar a rota, entre dois e dez anos. Posto isto, nenhum indivíduo é detentor absoluto dos objetos em questão, pois a participação neste fenómeno implica a “filiação” num processo de troca tão permanente quanto a duração da vida. (Malinowski, op.cit.: 94) Ademais, a troca no Kula deve ser concretizada de acordo com a categoria social respetiva de cada sujeito. Isto não é negar a participação de um sujeito banal no Kula, mas sublinhar a sua quase irrelevância, uma vez que a sua classe social resulta num menor número de associados. (ibid.: 91) Já Mauss tinha classificado o Kula como comércio nobre. (Mauss, op.cit.: 214-215) Uma das regras é que a retribuição de um objeto, a rigor, deve equivaler ou suplantar em valor, o primeiro objeto oferecido, apesar de não ser obrigatório. Sem embargo, o sujeito que espera receber um objeto de simétrica riqueza ao dado, mas recebe um de valor inferior, pode recorrer a uma estratégia que passa por gabar-se da sua generosidade, e compará-la com a tacanhez do indivíduo que devolveu um objeto de reduzido valor. (Malinowski, op.cit.: 96-98)
Existem ainda duas variedades de Kula:, o kula interior, que consiste em abastecer uma comunidade ou comunidades contínguas, e onde a troca de artigos é permeada cronicamente dentro da comunidade ou entre as comunidades; o Kula marítimo, mais solene, caracterizado por grandes expedições marítimas, na qual um chefe e os seus súbditos partem com uma quantidade tremenda de bens que podem alcançar a casa dos milhares rumo a outra ilha, onde entregarão esses presentes. Ulteriormente, a tribo que recebe a visita tornar-se-á na tribo visitante, e a primeira tribo retribuirá o presente com juros. (ibid.: 103) Em suma, o Kula é, por assim dizer, a camada superior num sistema de trocas recíprocas cuja profundidade revela outras dimensões do todo social que configura a vida nas ilhas Trobriand (o económico, o religioso, o social e o político), daí a sua complexa morfologia, ou, para aplicar uma terminologia de Marcel Mauss, o seu estatuto indiscutível de facto social total.
References:
- Malinowski, Bronislaw (2005 [1922])), Argonauts of Western Pacific, London, Routledge.
- Mauss, Marcel (2003), Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.
