Dádiva

Neste artigo sintetiza-se o essencial sobre o conceito de dádiva, segundo o enfoque de Marcel Mauss.

Dádiva

 O seminal Ensaio sobre a Dádiva de Marcel Mauss representou um profundo contraponto à ideologia dominante que vigorou institucionalmente nas sociedades modernas, cuja racionalidade repartia os direitos dos indivíduos entre direitos reais e direitos pessoais; uma repartição abstrata que, com as devidas alterações, alude à alienação proposta na crítica económica de Marx.

Mauss argumenta que a retórica fria e calculista do homo economicus é um fenómeno recente no campo dos direitos das grandes civilizações (Mauss: 265-266), e que se deve regressar à raiz desses direitos (que teriam, na sua génese, estado unificados num sistema de trocas cunhado pelo autor como uma economia de dádivas), para se redescobrirem os pretextos essenciais a uma moral altruísta e à mitigação da mecânica solipsista do liberalismo das sociedades modernas. (ibid.: 299)

Suportando-se de uma “arqueologia” etnográfica que percorre as diversas camadas dos mundos primitivos de forma a analisar a natureza das transações humanas, o sociólogo perspetiva o funcionamento do mercado antes da moeda propriamente dita, isto é, antes de serem descobertas as formas modernas (semítica, helénica, helenística e romana) do contrato e da venda, de um lado, e a moeda oficial, de outro. Nesta linha de investigação o autor defronta-se com um sistema de prestações sociais inerente à estrutura dos direitos na Polinésia, Melanésia, Noroeste Americano entre outros grandes direitos. Este sistema de prestações sociais é denominado uma economia de dádiva, eufemismo para um sistema geral de obrigação, onde há uma tripla obrigação: dar, receber e retribuir. (ibid.: 200)

Que marcas singularizam a dádiva? O seu carácter voluntário, supostamente livre e gratuito, e no entanto obrigatório e interessado dessas prestações em forma de presentes, a sua expressão como facto social total, isto é, sistema de trocas que implicam um complexo institucional – religioso, jurídico e moral – estas formas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo; económico – este supondo modos particulares de produção e de consumo, quer dizer, de fornecimento e de distribuição –; e todo um conjunto de manifestações estéticas e morfológicas. Por outro lado, o seu carácter assimétrico: ao contrário do sistema bipartido do mercado, que funciona de acordo com o par dar-pagar, na dádiva (dar-receber-retribuir), a coisa devolvida nunca tem um valor igual ao do bem inicialmente recebido. Aqui, o valor predominante é qualitativo, e o que fundamenta a retribuição não é a simetria entre os bens, mas sim a discrepância entre estes.

Recorrendo à interpretação das etnografias realizadas em sociedades polinésias, Mauss defende que as trocas entre indivíduos são mais do que permutações desinteressadas de bens: em primeiro lugar, a coletividade precede o indivíduo, pelo que são as pessoas morais na sua constituição enquanto clãs, tribos e famílias que se opõem frente a frente; em segundo lugar, não se trocam exclusivamente bens, mas também amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o mercado é uma fase somente, e no qual a circulação de riquezas não é senão um dos termos de um contrato deveras mais amplo e permanente. (ibid.: 190-191) Samoa serve como ilustração: o seu sistema de oferendas contratuais estende-se muito além do casamento, pois acompanha o nascimento do filho/a, a circuncisão, a doença, a puberdade da moça, os ritos funerários e o comércio (ibid.: 194)

O princípio mais abstrato no qual Mauss incorpora os bens é no que os Maori definem como hau, isto é, o espírito da coisa. O hau é como que uma entidade vigilante que garante a devida conduta moral do que recebe o presente, para que este ofereça outro presente. Entre os Maori, os bens que possuem um hau são os tonga, isto é, tudo o que é propriedade propriamente dita: tesouros, talismãs, brasões, as esteiras e os ídolos sagrados, e às vezes, tradições, cultos e rituais mágicos. (ibid.: 197). Consequentemente, estes objetos estão fortemente ligados à pessoa, ao clã e ao solo, e ao serem abandonados na troca, conservam sempre algo do dono independentemente do número de transações.

Esta inseparabilidade metafísica entre objeto e sujeito perde qualquer classificação redutora de exotismo se for contemplada a troca no direito romano antigo: o contratante (reus) recebe a coisa (res) de outrem, e liga-se a esta espiritualmente; ter a coisa coloca o detentor num estado incerto de quase culpabilidade, de inferioridade espiritual, de desigualdade moral perante o fornecedor do bem. (ibid.: 273) Ademais, a coisa não é dada apenas: o detentor separa-se solenemente da sua coisa, entregando-a a outrem e “comprando” esse novo detentor; aquele que recebe a coisa toma-a em suas mãos (manus) e não apenas a reconhece e aceita, como se reconhece ele próprio vendido até à retribuição, por outros termos, o pagamento. Traços semelhantes são encontrados por Mauss no direito hindu clássico, no direito germânico, no direito céltico e no direito chinês.

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References:

Mauss, Marcel (2003), Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.

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