Até ao século XX, a tradição filosófica ocidental alimentou-se de dualismos: desde as formas platónicas até ao res cogitan cartesiano. O monismo panteísta de Spinoza decerto inovou pela recusa em separar ontologicamente pensamento e extensão, e contudo, a barreira epistemológica entre pensamento e extensão permaneceu imaculada. Foi contra este monopólio dualístico entre sujeito e objeto que a «hermenêutica do Dasein» de Heidegger se insurgiu, provocando uma transformação paradigmática na filosofia, e restituindo a esta o seu poder.
O golpe de génio prendeu-se com a audácia do filósofo em ter deslocado a hermenêutica enquanto disciplina com grande autoridade interpretativa sobre os textos sagrados, para a própria compreensão do ser humano, uma vez que ser é interpretar. Este movimento derivou de duas preocupações fulcrais quanto ao modelo filosófico, até então em voga, que opunha sujeito e objeto: a filosofia tradicional, ao utilizar um discurso objetivador da experiência humana, reduziu a identidade do ser; a percepção, concebida metodologicamente enquanto experiência privada de um sujeito isolado, distorcia completamente a riqueza da existência no mundo. (Palmer: 130)
Recorrendo a um novo aparato conceptual, o autor de Ser e Tempo introduz uma diferença entre ser e entidades, por outras palavras, uma divisão ontológica. O ser é distinto do ente e o inverso é igualmente verdadeiro. No entanto é o ser que determina o ente enquanto ente, e o ente é tudo a quanto o ser se refere. Efetivamente, Heidegger concede uma prioridade transcendente ao ser sobre o ente. Mas este dualismo, longe de uma intenção reducionista, consiste numa metodologia que tem como fim traçar a estrutura da compreensão do Dasein (“ser-no-mundo”), e esta é acima de tudo, linguística e historicamente composta e inseparável da existência sensível do homem.
Anuncia-se nesta tese o pluralismo conceptual. Esta prescrição é ainda condicionada por outro dado: não pretende alcançar uma validade universal. (Lafont: 269)
Mas que mundo é este no qual o ser realiza a sua possibilidade? Será o mundo objetivo? Não. O termo mundo em Heidegger vai de encontro ao que poderíamos denominar como mundo pessoal. (Palmer: 137) É estruturado por uma totalidade de significados com os quais o ser se encontra inelutavelmente entrelaçado, como num determinado contexto cultural e os indivíduos que constituem esse mesmo domínio por exemplo. Isto é dizer que o ser, antes de ser o observador neutro que a filosofia tradicional pretendeu que fosse, é por natureza participativo: primeiro o mundo é intersubjetivo (Palmer: 139); só posteriormente é que o solipsismo subjetivo é tangível. Ao participar de um mundo, o ser exprimirá esse mesmo mundo numa linguagem que é uma ideação, isto é, o modo de ver já moldado (e nunca neutro) que é a sua interpretação. (Lafont: 273-274)
Deste modo, a inteligibilidade do Dasein reside na sua capacidade interpretativa, quer dizer, na sua disposição pré-científica e intuitiva no mundo: este é um ser que se furta às categorias conceptualizantes e intemporais de um pensamento focado em ideias, e só uma hermenêutica ontológica servirá com fidelidade a filosofia na compreensão e revelação do ser.
References:
Lafont, Cristina (2005), “Hermeneutics”, em Hubert L. Dreyfus e Mark A. Wrathall (orgs.), A Companion to Heidegger, Routledge, Uk. 265-284
Palmer, Richard (2011 [1969]), Hermenêutica, Edições 70, Lisboa.