Conceito de Bioquímica
A Bioquímica pode ser definida como a ciência da base Química da vida. Sendo que a célula é a unidade estrutural dos sistemas vivos, a Bioquímica contribui para o estudo das razões pelas quais os organismos apresentam determinados atributos que lhes conferem vida, apesar de constituídos por moléculas e átomos como a matéria inanimada, e regidos pelas mesmas leis universais da Física e da Química. Deste modo, um dos objetivos da Bioquímica é descrever em termos moleculares as estruturas, mecanismos e processos químicos comuns a todos os organismos, e providenciar os princípios organizadores subjacentes à vida nas suas diversas formas, designados como a lógica molecular da vida.
Pode-se, ainda, compreender a Bioquímica como uma disciplina que pretende explicar as formas e funções biológicas em termos químicos. Um desafio central da Bioquímica é compreender a influência da organização celular e associações macromoleculares na função de enzimas individuais e outras biomoléculas, a fim de entender a sua função in vivo e in vitro.
As biomoléculas que realizam o conjunto das funções necessárias aos organismos vivos são as seguintes:
- Proteínas, longos polímeros de aminoácidos e os principais constituintes das células, cujas funções podem ser de catálise de reações (enzimas), como elementos estruturais, receptores de sinal, ou transportadores de substâncias específicas para dentro e fora das células;
- Polissacarídeos, polímeros de açúcares simples como a glucose, a fim de armazenar energia e como elementos estruturais extracelulares com locais de ligação específicos para determinadas proteínas;
- Lípidos que incluem os componentes estruturais da membrana da célula, por exemplo os fosfolípidos, armazenamento de energia, pigmentos e sinais intracelulares;
- Ácidos Nucleicos constituídos por nucleótidos que formam o DNA (ácido desoxirribonucleico) e o RNA (ácido ribonucleico), que armazenam e transmitem a informação genética, e algumas moléculas de RNA que apresentam funções estruturais e catalíticas em complexos supramoleculares.
Marcos importantes na Bioquímica
Como as questões que surgem em investigação científica raramente dizem respeito a apenas uma área de conhecimento, a Bioquímica está em constante interação com outras áreas científicas, nomeadamente, a Biologia Celular, Química, Física, Genética e Evolução.
Destaca-se o contributo de Antoine Lavoisier (século XVIII) que identificou a relativa simplicidade química do “mundo mineral” e a contrastou com a complexidade do “mundo das plantas e animais”, sendo estes últimos constituídos por compostos ricos em carbono, oxigénio, azoto e fósforo. Além disso, Antoine Lavoisier observou também que os animais transformavam de alguma forma os combustíveis químicos (alimentos) em calor, e que este processo da respiração é essencial à vida. Por sua vez, Louis Pasteur (século XIX) estudou o fenómeno da atividade ótica de enantiómeros, estereoisómeros com propriedades químicas semelhantes que diferem na sua interação com a luz polarizada. A estereoespecificidade, isto é, a habilidade para distinguir entre estereoisómeros, é uma propriedade das enzimas e outras proteínas, e uma propriedade da lógica molecular da vida. Outro passo importante para a Bioquímica foi dado por Friedrich Wohler (século XIX) pela síntese da ureia, um composto orgânico encontrado na urina humana, a partir de um composto inorgânico, colocando assim em causa a teoria do princípio vital da Química Orgânica, que afirmava que os compostos orgânicos podiam ser produzidos apenas por organismos vivos.
Uma parte significativa da história da Bioquímica é a história da investigação de enzimas. A catálise biológica foi primeiramente reconhecida e descrita no século XVIII, em estudos da digestão de carne por secreções do estômago, e a investigação continuou no século XIX com a análise da conversão de amido em açúcar pela saliva e vários extratos de plantas. Em meados do século XIX, Louis Pasteur concluiu que a fermentação do açúcar em álcool pela levedura é catalisada por “fermentos”. Louis Pasteur postulou que estes “fermentos” eram inseparáveis da estrutura das células vivas, uma visão da época denominada vitalismo. Posteriormente, em 1897 foi descoberta a fermentação em extratos de levedura por Hans Buchner e Eduard Buchner, demonstrando que a fermentação era promovida por moléculas que continuavam a sua função fora das células. O fisiologista Wilhelm Kühne introduziu o termo enzima para denominar estas moléculas como o agente responsável pelo processo de fermentação. Deste modo, à medida que a conceção vitalística da vida era contestada, o isolamento de novas enzimas e a investigação das suas propriedades avançou a ciência da Bioquímica. A primeira enzima isolada e cristalizada foi a urease conferindo a atribuição de um prémio Nobel da Química em 1946 a James Batcheller Sumner, que foi partilhado com John Northrop e Wendell Stanley.
Outro contributo relevante em Bioquímica foi realizado por Albert Claude, Christian de Duve e George E. Palade, pela descoberta da organização estrutural e funcional da célula. Estes cientistas desenvolveram métodos para separar organelos do citosol e de outros organelos, permitindo o isolamento e estudo da estrutura e função de biomoléculas e outros componentes celulares.
Por outro lado, os componentes celulares como DNA, RNA e proteínas, para além do uso de energia química para formar ligações covalentes entre as subunidades destes polímeros, precisam de energia a fim de colocarem as subunidades na sequência correta. De acordo com a segunda lei da Termodinâmica, a tendência na natureza é em direção a uma maior desordem, ou entropia, no universo. Assim, é necessário fornecer energia livre ao sistema, ou à célula, para desencadear a síntese de macromoléculas a partir de unidades monoméricas. J. Willard Gibbs (século XIX) desenvolveu a teoria da energia livre demonstrando que a energia livre de Gibbs, ΔG, de uma reação química num sistema fechado é definida em termos de três grandezas, nomeadamente, a entalpia, H, que reflete o número e tipos de ligações, a entropia, S, e a temperatura absoluta, T em graus Kelvin. A energia livre de Gibbs de uma reação química, a uma temperatura constante, é determinada pela equação:
ΔG = ΔH – T ΔS,
sendo ΔG a energia livre de Gibbs, ΔH a variação de entalpia, T a temperatura absoluta em graus Kelvin e ΔS a variação de entropia, que por convenção tem um sinal positivo quando a entropia aumenta. Uma reação tende a ocorrer espontaneamente se ΔG for negativo. No entanto, a função celular depende maioritariamente de moléculas cuja energia livre de formação é positiva, isto é, as moléculas resultantes são menos estáveis e apresentam menor ΔS que a mistura dos seus componentes monoméricos. Por esta razão, estas reações desfavoráveis que requerem energia, denominadas endergónicas, são acopladas a outras reações que libertam energia livre, reações exergónicas como por exemplo a hidrólise de ATP, para que a soma da variação de energia livre de ambas as reações seja negativa.
Ademais, o isolamento de ácidos nucleicos conseguindo por Johannes Friedrich Miescher (século XIX), a investigação detalhada de Walther Flemming (século XIX) sobre os cromossomas, e posteriormente a obtenção da estrutura de DNA por Rosalind Franklin, James Watson e Francis Crick (século XX) foram desenvolvimentos relevantes para a fundação e consolidação da Bioquímica.
Ao longo do século XX, a investigação bioquímica providenciou um acervo de informação a partir das sequências e estruturas tridimensionais de ácidos nucleicos e proteínas de diferentes espécies, usado para refinar a teoria da evolução publicada por Charles Darwin em 1859 no livro “A origem das espécies” que providencia uma hipótese unificadora para explicar a filogenia dos organismos modernos, a seleção natural e a origem das espécies a partir de um ancestral comum. Posteriormente, Theodosius Dobzhansky, autor principal da Teoria Sintética da Evolução, conciliou as ideias de Charles Darwin sobre a evolução da espécies com a genética Mendeliana. A semelhança de vias metabólicas e sequências genéticas nos organismos de diversos filos corrobora a hipótese de todos os organismos modernos partilharem um ancestral comum, e serem dele derivados através de uma série de mutações, cada uma conferido uma vantagem seletiva particular a alguns organismos em determinado nicho ecológico.
Aplicações da Bioquímica
O conhecimento em Bioquímica é essencial a todas as Ciências da Vida. A Bioquímica dos ácidos nucleicos está na base da Genética, e o uso de uma abordagem Genética é fundamental para elucidar diversas áreas da Bioquímica. A Bioquímica tem também um papel fundamental na investigação em Medicina, nas causas de doenças e terapias adequadas e, por outro lado, diversos aspetos da saúde e doença deslindam novas áreas de investigação em Bioquímica. A título de exemplo, o médico Archibald Garrod estudou pacientes com doenças raras como alcaptonúria, albinismo, cistinúria e pentosúria, estabelecendo que estas doenças eram geneticamente determinadas e designou estas condições como erros inatos do metabolismo, atribuindo uma função bioquímica aos genes.
O vídeo do professor Dominique Belin, pela Université de Genève, ilustra as investigações de Archibald Garrod sobre a alcaptonúria.
Na Agricultura, a Bioquímica é aplicada, por exemplo, no melhoramento de diversas plantas como arroz, trigo e milho, que são mais resistentes à seca ou temperatura extremas, mais eficientes na fixação de azoto ou na produção de sementes que contenham o complemento completo de aminoácidos essenciais. Na Toxicologia, uma vez que a maioria dos fármacos são metabolizados por reações catalisadas por enzimas, o estudo de enzimas como o citocromo P450, responsável pela metabolização de fármacos, permite minimizar potenciais reações adversas para a saúde.
Na indústria alimentar, a Bioquímica estuda a composição química dos alimentos, por exemplo, a atividade enzimática no mel. Graças às suas propriedades específicas, as enzimas invertase e glucose oxidase recebem particular atenção. Enquanto que a invertase é usada na conversão da sacarose do mel em frutose e glucose, a função principal da glucose oxidase é catalisar a oxidação de β-D-glucose em ácido glucónico com a produção de peróxido de hidrogénio (H2O2), responsável pela possível atividade antibacteriana que resulta no aumento da vida útil do mel.
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