Semiologia

 

  • Prolegómenos

 É um lugar comum consagrar a Charles Peirce e principalmente a Ferdinand de Saussure a inauguração da área de estudos denominada como Semiologia, no seu cariz disciplinar científico. Todavia, a matriz deste saber atravessa os séculos, pois a história da identificação e o uso de signos linguísticos de modo apropriado em certos domínios culturais específicos de conhecimento e prática, pode ser traçada até a divinação na antiga Mesopotâmia, estendendo-se à filosofia grega antiga, e marcando presença assídua no primeiro século antes da era comum, na estética e semântica encontradas nos sutras indianos.

Uma formalização mais rigorosa teria que aguardar até ao génio de Santo Agostinho, o primeiro pensador a identificar o signo (signum), na obra De Doctrina Christiana, como um universal que opera em qualquer e todos os contextos onde a significância é comunicada entre dois ou mais humanos. Isto é, Santo Agostinho propôs um ponto de vista que autorizou o entendimento das coisas em termos da função significante do signo. No entanto, ao definir o signo como uma coisa que, sobre e acima da impressão que provoca nos sentidos, despoleta algo mais no pensamento, Agostinho atribuiu um primado à perceção neste processo. Refletindo sobre esta doutrina, Agostinho escolheu limitar o âmbito do signo à teologia sacra, e esta escolha teve como desfecho a limitação do potencial analítico do signo durante o período latido e grande parte do Renascimento.

Na definição de Agostinho, excluem-se desde logo certas ideias do caráter de signo, posto que não se sujeitam à perceção. Esta restrição acabaria por provocar comichão aos “semiólogos” latinos, mas dado o tremendo poder da tradição, mesmo os pensadores mais independentes tentaram compatibilizar a doutrina agostiniana do signo ao proporem vários binómios para vários tipos de signos, nos quais a metade de um par representaria a continuidade com a tradição e a outra metade a mudança. Tal tradição exercia toda essa força porque a sua rutura significaria o fim de uma tradição que de Agostinho culmina nas dicotomias aristotélicas entre substância e acidente, semeion e symbolon, e natureza e cultura.

A primeira crítica que julgou e sistematizou a temática augustiniana, partiu do filósofo português dominicano Frei João de São Tomás, que removeu a perceção da definição de signo, e assim expandiu o horizonte da semiologia à palavra e às ideias. Porém, a importantíssima mensagem de Frei João seria perdida com a aurora da epistemologia cartesiana e a atividade filosófica solipsista que caracterizaria a era moderna durante cerca de três séculos. 58 anos após Frei João, John Locke ficaria com o mérito de propor um novo campo de estudos chamado semiótica. A doutrina dos signos de Locke, caraterizada pelo próprio como “apta e lógica”, consideraria a natureza dos signos, os usos da mente na compreensão das coisas ou na transmissão de conhecimento a outros. Adicionalmente a cunhar o termo semiótica, Locke ainda foi o primeiro pensador no mundo não latino a libertar o signo da perceção, limitação imposta por Agostinho: os signos seriam representações das ideias, às quais os sentidos não têm acesso direto, e necessitariam de sons articulados para serem comunicados e compreendidos.

 

  • Ferdinand de Saussure

 A semiologia de Saussure foi construída com base na língua. A língua é o sistema linguístico que é somente uma parte da faculdade linguística. Para isolar a língua, remove-se cada um dos pares hierárquicos que constituem a linguagem. O primeiro par da linguagem a ser retirado é a linguagem enquanto diacrónica, e assim fica a dimensão sincrónica da linguagem, que consiste na fala e na língua: entre a fala e a língua, remove-se a fala, que é idiossincrática, contingente e pragmática; a língua é a construção analítica, o sistema abstrato da língua que poderá explicar as regularidades e padrões típicos da língua normalmente omitidos da consciência dos indivíduos falantes, pelo que não é uma realidade ontológica.

 É na língua que se encontra a pedra de toque do sistema linguístico, e o fundamento do signo. Um signo linguístico, segundo Saussure, consiste numa relação que liga a imagem acústica ao conceito, ou o significante ao significado: a ligação não é entre uma coisa e o nome, mas entre o conceito e o som, e esta relação é interna à linguagem, à mente, e independente da realidade exterior. Assim, o signo linguístico não representa um mundo exterior, pois que o signo linguístico constrói esse mesmo mundo: por exemplo, a palavra cão não significa um cão (o animal), mas o conceito de cão.

O significante e o significado acabam por ser funções que cooperam num estrato diferente: o significante num plano mais abstrato, e o significado num plano mais “rudimentar”. O problema com esta perspetiva é que sobra a dúvida quanto à relação da estrutura interna de signos com o mundo exterior. Se a relação interna semiologicamente estruturada do significante com o significado analogicamente estrutura, organiza, e orienta os signos usados a partir dos fluxos de percepções recebidos do mundo externo, resulta disto uma visão nominalista da linguagem e do mundo.

 

  • Charles Sanders Peirce

 A proposta de Locke ficou confinada ao sono desde o século XVII ao século XIX, momento em que o polímata Charles Sanders Peirce assumiu esse legado, alargando o raio de ação do manifesto original de Locke. No entanto, obedecendo à ética terminológica, Peirce seguiu Locke e nomeou como semeiótica (para preservar palavra grega original semeion) a sua teoria dos signos. O trabalho de Peirce sobre os signos foi paradoxal: representou um proeminente avanço, mas ao mesmo tempo não constitui um núcleo significativo do todo o trabalho alcançado em vida.

Nos estudos de Peirce devotados à semeiótica, encontram-se 89 definições para signo, e esta definições abrangiam variados contextos, desde a matemática, a lógica, a filosofia, química, psicologia, linguística, história, metafísica e teorias da mente. Ao contrário dos cartesianos, em Peirce a definição de signo transgride facilmente dicotomias como mente/corpo, natureza/cultura, humano/animal, matéria/espírito. O cosmos está repleto de signos para Peirce, e os signos tanto podem existir em cristais como no cérebro. Desde o início que Peirce determinou a natureza irredutível de tríade do signo, e tal prova foi derivada da lógica, matemática e fenomenologia. Assim, o primeiro correlato da tríade é o signo, o segundo é o objeto, e o terceiro é o intérprete: ou seja, o signo semeiótico é constituído por uma tríade irredutível na qual o signo está para o objeto e para o intérprete; o signo medeia o objeto e o intérprete ao representar o objeto ao interpretante; o objeto ao referir o signo relaciona o interpretante com o signo; o intérprete medeia o signo e o objeto ao interpretar ou traduzir o signo. Caso um dos elementos desta tríade seja removido, o Signo deixa de o ser.

 

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References:

Deeley, J. (1982), Introducing Semiotic: Its History and Doctrine, Bloomington, Indiana University Press.

Liska, J. J. (1996), A General Introduction to the Semeiotic of Charles Sanders Peirce, Bloomington, Indiana University Press.

Manetti, G. (1993), Theories of the Sign in Classical Antiquity, Bloomington, Indiana University Press.

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